Escrito em 1888, último ano antes de Friedrich Nietzsche perder a lucidez, este ensaio é uma das mais afiadas análises de que o cristianismo já foi objeto. Dando continuidade ao exame sobre a moral praticado na maioria de seus livros, em “O anticristo” o autor firma sua posição sobre a doutrina religiosa. Ele mostra como o cristianismo – ao qual chama de maldição – é a vitória dos fracos, doentes e rancorosos sobre os fortes, orgulhosos e saudáveis, persuadindo e induzindo a massa por meio de ideias pré-fabricadas. A partir da comparação com outras religiões, Nietzsche critica com veemência a mudança de foco que o cristianismo opera, uma vez que o centro da vida passa a ser o além e não o mundo presente. Até mesmo Jesus Cristo e o apóstolo Paulo são questionados, assim como grande parte de todos os dogmas cristãos, em um grande exercício filosófico.
O Anticristo – Friedrich Nietzsche
Friedrich NietzscheCiberfil Literatura Digital
Fevereiro de 2002Permitida a distribuiçãoVisite nosso site: www.ciberfil.hpg.ig.com.br ou mande-nos um e-mail: [email protected]
Tradutor: André Díspore CancianFonte: Ateus.net - O Baluarte da Criticidade
Este livro pertence aos homens mais raros. Talvez nenhum deles sequer esteja vivo. É possível que se
encontrem entre aqueles que compreendem o meu "Zaratustra": como eu poderia misturar-me àqueles
aos quais se presta ouvidos atualmente? - Somente os dias vindouros me pertencem. Alguns homens
nascem póstumos.As condições sob as quais sou compreendido, sob as quais sou necessariamente compreendido - conheço-
as muito bem. Para suportar minha seriedade, minha paixão, é necessário possuir uma integridade
intelectual levada aos limites extremos. Estar acostumado a viver no cimo das montanhas - e ver a
imundície política e o nacionalismo abaixo de si. Ter se tornado indiferente; nunca perguntar se a
verdade será útil ou prejudicial... Possuir uma inclinação - nascida da força - para questões que
ninguém possui coragem de enfrentar; ousadia para o proibido; predestinação para o labirinto. Uma
experiência de sete solidões. Ouvidos novos para música nova. Olhos novos para o mais distante. Uma
consciência nova para verdades que até agora permaneceram mudas. E um desejo de economia em
grande estilo - acumular sua força, seu entusiasmo... Auto-reverência, amor próprio, absoluta liberdade
para consigo...Muito bem! Apenas esses são meus leitores, meus verdadeiros leitores, meus leitores predestinados: que
importância tem o resto? - O resto é somente a humanidade. - É preciso tornar-se superior à
humanidade em poder, em grandeza de alma - em desprezo...
Friedrich Nietzsche1- Olhemos-nos face a face. Somos hiperbóreos (1) - sabemos muito bem quão remota é nossa morada.
"Nem por terra nem por mar encontrarás o caminho aos hiperbóreos": mesmo Píndaro, em seus dias,
sabia tanto sobre nós. Além do Norte, além do gelo, além da morte - nossa vida, nossa felicidade... Nós
descobrimos essa felicidade; nós conhecemos o caminho; retiramos essa sabedoria dos milhares de anos
no labirinto. Quem mais a descobriu? - 0 homem moderno? - "Eu não conheço nem a saída nem a
entrada; sou tudo aquilo que não sabe nem sair nem entrar" - assim suspira o homem moderno... Esse é o
tipo de modernidade que nos adoeceu - a paz indolente, o compromisso covarde, toda a virtuosa sujidade
do moderno Sim e Não. Essa tolerância e largeur(2) de coração que tudo "perdoa" porque tudo
"compreende" é um siroco (3)para nós. Antes viver no meio do gelo que entre virtudes modernas e outros
ventos do sul!... Fomos bastante corajosos; não poupamos a nós mesmos nem os outros; mas levamos um
longo tempo para descobrir aonde direcionar nossa coragem. Tornamo-nos tristes; nos chamaram de
fatalistas. Nosso destino - ele era a plenitude, a tensão, o acumular de forças. Tínhamos sede de
relâmpagos e grandes feitos; mantivemo-nos o mais longe possível da felicidade dos fracos, da
"resignação"... Nosso ar era tempestuoso; nossa própria natureza tornou-se sombria - pois ainda não
havíamos encontrado o caminho. A fórmula de nossa felicidade: um Sim, um Não, uma linha reta, uma
meta...1 - Os Gregos acreditavam que no extremo Norte da Terra vivia um povo que gozava de felicidade
eterna, os hiperbóreos, que nunca guerreavam, adoeciam ou envelheciam. Sem a ajuda dos Deuses, seu
território era inalcançável. (N. do T)2 - Grandeza.3 - Vento asfixiante, quente e empoeirado originário de desertos. (N. do T.)11
0 que é bom? - Tudo que aumenta, no homem, a sensação de poder, a vontade de poder, o próprio poder.O que é mau? - Tudo que se origina da fraqueza.O que é felicidade? - A sensação de que o poder aumenta - de que uma resistência foi superada.Não o contentamento, mas mais poder; não a paz a qualquer custo, mas a guerra; não a virtude, mas a
eficiência (virtude no sentido da Renascença, virtu(1