Este é o livro de um descrente que procura compreender como o Cristianismo, obra-prima da criação religiosa, se impôs a todo o Ocidente À sua maneira inimitável, erudita e, por vezes, impertinente, Paul Veyne inventaria, para isso, três razões- – Um imperador romano, Constantino, converte-se sinceramente ao Cristianismo; – Constantino converteu-se porque precisava de uma grande religião; – Constantino foi o grande impulsionador da criação da Igreja Cristã, através da rede de bispados espalhada pelo imenso Império Romano De passagem, Paul Veyne evoca outras questões- de onde vem o monoteísmo? Tem fundamento falar de ideologia? A religião tem raízes psicológicas? E temos nós origens cristãs?
Quando o nosso mundo se tornou cristão – Paul Veyne
PAUL VEYNE
Quando Nosso Mundo Se Tornou Cristão
Tradução de Marcos de Castro
2a edição
CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA – 2011
A Lucien Jerphagnon, e em memória de Claude Roy
CAPÍTULO I – O salvador da humanidade: Constantino
Um dos acontecimentos decisivos da história ocidental e até mesmo da história mundial deu-se no ano de 312 no imenso Império Romano. A Igreja cristã tinha começado muito mal esse século IV de nossa era: de 303 a 311, sofrerá uma das piores perseguições de sua história, milhares foram mortos. Em 311, um dos quatro co-imperadores que repartiam entre si o governo do Império estava decidido a pôr fim àquele estado de coisas, reconhecendo amargamente em sua atitude de tolerância que perseguir não adiantava nada, pois muitos cristãos que tinham renegado sua fé para salvar a vida não tinham voltado ao paganismo. Assim (e esse, à época, foi um assunto de inquietação para um governante), criaram-se buracos no tecido religioso da sociedade.
Ora, no ano seguinte, 312, deu-se um dos acontecimentos mais imprevisíveis: outro dos co-imperadores, Constantino, o herói dessa grande história, converteu-se ao cristianismo depois de um sonho ("sob este sinal vencerás"). Por essa época, considera-se que só cinco ou dez por cento da população do Império (70 milhões de habitantes, talvez) eram cristãos. "Não se pode esquecer", escreve J. B. Bury, "que a revolução religiosa promovida por Constantino em 312 foi o ato mais audacioso já cometido por um autocrata, desafiando e desprezando o que pensava a grande maioria dos súditos".
BANALIDADE DO EXCEPCIONAL
Oitenta anos mais tarde, como se descobrirá depois, num outro campo de batalha e ao longo de um outro rio, o paganismo será proibido e acabará vencido, sem que tenha sido perseguido. Porque, ao longo de todo o século IV, a própria Igreja, deixando de ser perseguida como o tinha sido ao longo de três séculos, terá o apoio incondicional da maioria dos Césares, tornados cristãos; assim, no século VI o Império estará quase todo povoado apenas de cristãos e, nos dias de hoje, há 1 bilhão e meio de cristãos em nosso planeta. Também é verdade que depois dos anos 600 a metade das regiões cristãs que tinha pertencido ao Império tornou-se muçulmana sem dificuldade aparente.
Que homem foi esse Constantino, de papel decisivo? Longe de ser o calculista cínico ou o supersticioso de que se falava ainda recentemente, ele foi, na minha opinião, um homem de larga visão: sua conversão permitiu-lhe participar daquilo que ele considerava uma epopeia sobrenatural, de assumir a direção desse movimento e, com isso, a salvação da humanidade; tinha ele o sentimento de que, para essa salvação, seu reinado seria, sob o ponto de vista religioso, uma época de transição na qual ele próprio teria um papel importantíssimo a representar. Mal se tornou chefe do ocidente romano (devia ter então 35 anos), escreveu em 314 a bispos romanos, seus "queridíssimos irmãos", que "a santa piedade eterna e inconcebível de nosso Deus se recusa de modo absoluto a permitir que a condição humana continue por mais tempo a errar nas trevas".
Sincero, Constantino o foi, sim, mas dizer isso é dizer muito pouco e, no seu caso, é preciso ter em vista o homem excepcional. Os historiadores estão menos habituados à exceção do que ao saudável método de "situar em uma série"; além de tudo, têm eles esse sentido da vulgaridade, do cotidiano, ausente em tantos intelectuais que acreditam no milagre em política ou que, ao contrário, "caluniam seu tempo por ignorância da história" (dizia Flaubert). Ora, Constantino apreciava o fato de ter sido escolhido, destinado pelo Decreto divino a desempenhar um papel providencial na economia milenar da Salvação; ele disse, escreveu isso, em um texto autêntico que se vai ler mais adiante, mas tão exagerado que a maior parte dos historiadores o desprezam, pelo que tem de pretensioso, e dele não falam.
Esse exagero, entretanto, nada tem de inacreditável, também deve