Esta é a história de um albino que mora em Luanda, Angola, e que traça árvores genealógicas em troco de dinheiro. Estranho ofício, estranho o personagem principal – o vendedor de passados falsos, Félix Ventura – e mais estranho ainda o narrador: uma osga, um tipo de lagartixa. É ela que vai contar como o albino Félix fabrica uma genealogia de luxo para seus clientes . São prósperos empresários, políticos e generais da emergente burguesia angolana que têm futuro assegurado, mas falta-lhes um bom passado. A vida de Félix anda muito bem, até que uma noite recebe a visita de um estrangeiro à procura de uma identidade angolana. E, então, numa vertigem, o passado irrompe pelo presente e o impossível começa a acontecer. Sátira feroz à atual sociedade angolana, “O Vendedor de Passados” é uma reflexão sobre a construção da memória e seus equívocos.
O Vendedor de Passados – José Eduardo Agualusa
O VENDEDOR DE
PASSADOS
um
romance
de
José Eduardo Agualusa
© Copyright 2004, José Eduardo Agualusa e Publicações Dom Quixote
“by arrangement with Dr. Ray-Güde Mertin, Literarische Agentur,
Bad Homburg, Germany”
Coordenação Editorial
Gisela Zincone
Editoração Eletrônica
Editoriarte
Revisão
Maria Helena da Silva
Capa
Ouriço Arquitetura e Design
Produção do eBook
Freitas Bastos
Adequado ao novo acordo ortográfico da língua portuguesa
CIP-brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ
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A224v
2.ed.
Agualusa, José Eduardo, 1960-
O vendedor de passados / um romance de José Eduardo Agualusa. – 2.ed. – Rio de Janeiro : Gryphus, 2011.
ISBN 978-85-60610-70-9
1. Romance angolano. I. Título.
11-5113. CDD: 869.8996733
CDU: 821.134.3(673)-3
10.08.11 17.08.11 028797
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GRYPHUS EDITORA.
Rua Major Rubens Vaz, 456 – Gávea – 22470-070
Rio de Janeiro – RJ – Tel.: (0XX21) 2533-2508
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“Se tivesse de nascer outra vez escolheria algo totalmente
diferente. Gostaria de ser norueguês. Talvez persa.
Uruguaio não, porque seria como mudar de bairro.”
– Jorge Luís Borges
(sumário interno)
Um pequeno deus nocturno
A casa
O estrangeiro
Um barco cheio de vozes
Sonho n.º 1
Alba
O nascimento de José Buchmann
Sonho n.º 2
Um esplendório
A filosofia de uma osga
Ilusões
Na minha primeira morte eu não morri
Sonho n.º 3
Espanta-espíritos
Sonho n.º 4
Eu, Eulálio
A chuva sobre a infância
Entre a vida e os livros
O mundo pequeno
O lacrau
O Ministro
Um fruto dos anos difíceis
Sonho n.º 5
Personagens reais
Anticlímax
As vidas irrelevantes
Edmundo Barata dos Reis
O amor, um crime
O grito da buganvília
O mascarado
Sonho n.º 6
Félix Ventura começa a escrever um diário
(um pequeno deus nocturno)
Nasci nesta casa e criei-me nela. Nunca saí. Ao entardecer encosto o corpo contra o cristal das janelas e contemplo o céu. Gosto de ver as labaredas altas, as nuvens a galope, e sobre elas os anjos, legiões deles, sacudindo as fagulhas dos cabelos, agitando as largas asas em chamas. É um espectáculo sempre idêntico. Todas as tardes, porém, venho até aqui e divirto-me e comovo-me como se o visse pela primeira vez. A semana passada Félix Ventura chegou mais cedo e surpreendeu-me a rir enquanto lá fora, no azul revolto, uma nuvem enorme corria em círculos, como um cão, tentando apagar o fogo que lhe abrasava a cauda.
– Ai, não posso crer ! Tu ris?!
Irritou-me o assombro da criatura. Senti medo mas não movi um músculo. O albino tirou os óculos escuros, guardou-os no bolso interior do casaco, despiu o casaco, lentamente, melancolicamente, e pendurou-o com cuidado nas costas de uma cadeira. Escolheu um disco de vinil e colocou-o no prato do velho gira-discos. “Acalanto para um Rio”, de Dora, a Cigarra, cantora brasileira que, suponho, conheceu alguma notoriedade nos anos setenta. Suponho isto a julgar pela capa do disco. É o desenho de uma mulher em biquíni, negra, bonita, com umas largas asas de borboleta presas às costas. “Dora, a Cigarra – Acalanto para um Rio – O Grande Sucesso do Momento”. A voz dela arde no ar. Nas últimas semanas tem sido esta a banda sonora do crepúsculo. Sei a letra de cor.
Nada passa, nada expira
O passado é
um rio que dorme
e a memória uma mentira
multiforme.
Dormem do rio as águas
e em meu regaço dormem os dias
dormem
dormem as mágoas
as agonias,
dormem.
Nada passa, nada expira
O passado é
um rio adormecido
parece morto, mal respira
acorda-o e salta