Você já pensou que num baralho existem muitas cartas de copas e de ouros, outras tantas de espadas e de paus, mas que existe apenas um curinga?”, pergunta à sua mãe certa vez a jovem protagonista de O mundo de Sofia.
Esse é o ponto de partida deste outro livro de Jostein Gaarder, a história de um garoto chamado Hans-Thomas e seu pai, que cruzam a Europa, da Noruega à Grécia, à procura da mulher que os deixou oito anos antes. No meio da viagem, um livro misterioso desencadeia uma narrativa paralela, em que mitos gregos, maldições de família, náufragos e cartas de baralho que ganham vida transformam a viagem de Hans-Thomas numa autêntica iniciação à busca do conhecimento – ou à filosofia.
O dia do curinga é a história de muitas viagens fantásticas que se entrelaçam numa viagem única e ainda mais fantástica – e que só pode ser feita por um grande aventureiro: o leitor.
JOSTEIN GAARDER
O DIA DO CURINGA
Tradução: JOÃO AZENHA JR.
Título original: Kabaliizysteriet
Tradução autorizada pelo autor, a partir da versão alemã de Gabriele Haefs
Capa: Silvia Ribeiro
Ilustração da capa: Maria Efigênia
Preparação: Marcia Collola
Revisão: Eliana Antonioli Tóliché Editorial Há seis anos, em frente às ruínas do antigo templo de Posêidon, no cabo Stinio, eu olhava para o mar Egeu. Há cento e cinqüenta anos o padeiro Hans chegava à misteriosa ilha no Atlântico. E há exatos duzentos anos o navio de Frode naufragava na viagem entre o México e a Espanha.
Tenho de voltar tantos anos no tempo para entender por que mamãe nos deixou e fugiu para Atenas...
Gostaria muito de pensar em outra coisa. Mas sei que preciso tentar escrever tudo enquanto restar em mim um pouco da criança que fui.
Sentado à janela da sala em Hisoy, observo as folhas caindo das árvores. Elas planam no ar e pou-sam na rua formando um acolchoado macio. Uma garotinha brinca lá fora, amassando com os pés as folhas e as castanhas que caem das árvores por entre as cercas dos jardins.
Nada parece ter sentido.
Quando penso nas cartas da paciência de Frode, tenho a impressão de que o equilíbrio da natureza desapareceu por completo.
ESPADAS
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ÁS DE ESPADAS
...um soldado alemão passou pedalando pela estrada...
Nossa longa viagem para a pátria dos filósofos começou em Arendal, uma antiga cidade portuá-
ria no Sul da Noruega. Atravessamos a distância de Kristiansand até HirtshaIs a bordo do Bolero, e não há muito a contar sobre a viagem pela Dinamarca e pela Alemanha. Tirando Legoland e o gigantesco porto de Hamburgo, tudo o que vimos foram rodovias e pequenas propriedades rurais. Somente quando chegamos aos Alpes é que as coisas realmente começaram a acontecer.
Tínhamos um trato, meu pai e eu. Eu não ficaria irritado quando tivéssemos de viajar compridos trechos antes de pararmos em algum lugar para dormir, e ele não fumaria no carro. Para agradar a ambos, decidimos que faríamos muitas pausas para ele fumar um cigarro. Essas pausas são o que tenho de mais vivo na memória de toda a viagem até à Su-
íça.
Desde que voltara a terra firme, depois de muitos anos no mar, ele se interessava, por exemplo, por robôs. Até aí nada de extraordinário; em se tratando de meu pai, porém, a coisa não parava por aí. É que ele estava plenamente convencido de que um dia a ciência conseguiria produzir seres artificiais. Não esses robôs idiotas de metal, que ficam acendendo luzinhas verdes e vermelhas e falam com uma vozinha oca. Não, meu pai acreditava que um dia a ciência ainda iria produzir gente mesmo, seres pensantes como nós, só que artificiais. E tem mais: no fundo ele já achava que todas as pessoas eram artificiais.
“Somos bonecos vivos”, ele costumava dizer, principalmente depois de ter bebido umas duas ou três doses.
Em Legoland, eu o surpreendi pensativo diante dos enormes bonecos feitos de peças de Lego.
Perguntei-lhe, então, se estava pensando em mamãe.
— Imagine se de repente tudo isso ganhasse vida, Hans-Thomas — disse ele. — Imagine se, de uma hora para outra, todos esses bonecos saíssem andando no meio dessas casinhas de plástico. O que nós faríamos?
— Você está louco — limitei-me a dizer, pois tinha certeza de que os outros pais que visitavam Legoland com seus filhos não diziam essas besteiras.
Decidi pedir-lhe um sorvete. Sabia que o melhor momento para lhe pedir alguma coisa era quando ele começava a externar suas idéias malucas.
Acho que ele tinha a consciência um pouco pesada por estar sempre me amolando com esses assuntos; e quando meu pai está com a consciência pesada, sua tendência é ser mão-aberta. Já ia abrindo a boca para pedir o sorvete quando ele disse:
— No fundo somos todos figuras de Lego, só que vivas.
Meu sorvete estava garantido: meu pai finalmente começara a filosofar.
Queríamos ir a Atenas, só que não para passar férias de verão: em Atenas ou em algum outro ponto da Grécia, queríamos procurar mamãe. Não tínhamos certeza de qu