O criador de Sandman reúne os deuses de todas as mitologias para atacar a América. Deuses Americanos, o melhor e mais ambicioso romance de Neil Gaiman, é uma viagem assustadora, estranha e louca que envolve um profundo exame do espírito americano. Gaiman ataca desde a violenta investida da era da informação até o significado da morte, sem sacrificar seu peculiar senso de humor e a rica estilo narrativo que ele vem exibindo desde Sandman.
Após a morte de sua esposa em um acidente de carro, Shadow é liberado da prisão antes de cumprir totalmente sua pena. Perdido, acaba por conhecer um homem misterioso, chamado Wednesday, que será muito mais importante na vida de Shadow do que ele imagina. Na verdade, Wednesday é um antigo deus, certa vez conhecido por Odin, o Pai de Todos. Ele está percorrendo os Estados Unidos a fim de reunir seus companheiros esquecidos para uma batalha épica contra as divindades do mundo moderno: internet, televisão, cartões de crédito, telefone, rádio… Shadow aceita ajudar Wednesday, e eles se lançam a uma tempestade psicoespiritual que se torna demasiadamente real em suas manifestações. A esposa morta de Shadow, por exemplo, continua a aparecer, e não apenas como um espectro – a dificuldade de ambos em manter seu relacionamento se torna sombriamente engraçada, assim como o resto do livro.
Armado somente de seus truques com moedas e alguma determinação, Shadow inicia uma viagem fantástica pela superfície visível das coisas – ao seu redor, sob ela -, literalmente descobrindo todos os poderosos mitos que os imigrantes europeus trouxeram com eles quando chegaram àquelas terras, assim como os que já viviam lá. Eles aparecem alí onde menos se esperava, zanzando na beira de estradas, comendo hamburgueres, são agora trapaceiros, prostitutas, sombras. “Esta não é uma boa terra para deuses”, diz Shadow.
Mais do que um turista na América, Neil Gaiman oferece uma perspectiva de fora para dentro – e, ao mesmo tempo, de dentro para fora – da alma e espiritualidade do país e do povo americano: suas obsessões por dinheiro e poder, sua miscigenada herança religiosa e as conseqüências sociais, e as decisões milenares que eles enfrentam sobre o que é real e o que não é.
Deuses Americanos
NEIL GAIMAN
Tradução de Ana Ban
Título Original: American Gods
ADVERTÊNCIA E AVISO AOS VIAJANTES
Esta é uma obra de ficção, não um guia. Como, nesta história, a geografia dos Estados Unidos não é completamente imaginária — muitas das localidades citadas neste livro podem ser visitadas, trilhas podem ser seguidas, caminhos podem ser mapeados —, tomei certas liberdades. Em número menor do que você possa imaginar, mas, ainda assim, liberdades.
Não foi pedida nem dada permissão para usar os lugares verdadeiros que aparecem nesta história. Eu espero que os donos da Cidade de Pedra, da Casa na Pedra e os caçadores proprietários do hotel, no centro dos Estados Unidos, fiquem tão perplexos quanto qualquer outra pessoa ao encontrar suas propriedades aqui.
Deixei vaga a localização de vários lugares: a cidade de Lakeside, por exemplo, e a fazenda com o freixo, uma hora ao sul de Blacksburg. Você pode procurá-los, se quiser... e até mesmo encontrá-los.
Fora isso, nem é preciso dizer que todas as personagens, vivas, mortas ou mortas-vivas, utilizadas nesta história, são fictícias ou foram usadas em um contexto fictício. Só os deuses são reais.
Uma questão que sempre me intrigou é o que acontece com os seres demoníacos quando os imigrantes se mudam de sua terra natal. Americanos de ascendência irlandesa lembram-se das fadas, americanos de ascendência norueguesa, das nisser, americanos de ascendência grega, das vrykólakas, mas só no que diz respeito a eventos acontecidos no Velho Continente.
Certa vez, quando perguntei por que (ais demônios não são vistos nos Estados Unidos, meus informantes riram confusos e disseram "Eles têm medo de cruzar o oceano, é muito longe", chamando atenção para o falo de que Cristo e os apóstolos nunca estiveram na América.
— Richard Dorson, "A Theory for American Folclore", American Folklore and the Historian
PARTE UM
SOMBRAS
CAPÍTULO UM
As fronteiras do nosso país, senhor? Como assim, senhor? Pelo norte, fazemos fronteira com a Aurora Boreal; pelo leste, com o sol nascente; pelo sul, com a procissão dos Equinócios; e, pelo oeste, com o Dia do julgamento Final.
— O livro de piadas americanas, de Joe Miller
Shadow havia cumprido três anos de prisão. Era bem grande e tinha uma cara de "não-se-meta-comigo", por isso seu maior problema era como fazer o tempo passar. Assim, mantinha o corpo em forma, treinava alguns truques com moedas e pensava no quanto amava sua mulher.
Na opinião de Shadow, a única coisa boa no fato de estar na prisão era um sentimento de alívio. O sentimento de ter mergulhado o máximo possível e atingido o fundo. Não se preocupava mais se o homem iria pegá-lo, porque já o havia pegado. Não tinha mais medo do que o amanhã traria, porque o ontem já trouxera o que estava reservado para ele.
Shadow resolveu que não fazia a mínima diferença se você havia mesmo feito aquilo pelo que fora condenado. Todo mundo que ele conheceu na prisão fora injustiçado em algum momento: sempre existia algo que as autoridades entenderam errado, algo que disseram que você fez quando, na verdade, não fez — ou que você não fez bem do jeito que eles falaram que você fez. O que importava é que tinham pegado você.
Percebeu isso logo nos primeiros dias, quando tudo, desde a gíria até a comida ruim, era novo. Apesar do sofrimento e da profunda sensação arrepiante de estar encarcerado, ele respirava aliviado.
Shadow tentava não falar muito. Por volta do seu segundo ano de prisão, mencionou algo sobre sua teoria a Low Key Lyesmith, seu companheiro de cela.
Low Key, um golpista de Minnesota, mostrou seu sorriso de cicatriz.
— É — disse. — É verdade. É até melhor se você for condenado à morte. É quando se lembra das piadas sobre os caras que chutaram as botas pra longe, quando sentiram o laço apertar o pescoço, porque os amigos sempre falavam que ele ia morrer de botas.
— Isso é uma piada? — perguntou Shadow.
— Claro que sim. Piada de enforcado. O