Este romance do escritor francês Prosper Mérimée (1803-1870) serviu de argumento para Georges Bizet (1838-1875) criar a ópera Carmem, uma das mais populares de todos os tempos.
Talvez a performance exitosa de Carmem (que estreou três meses depois da morte de Bizet e cinco anos após a morte de Mérimée) tenha posto em segundo plano este magnífico livro. Perfeito em sua concepção – bem ao gosto popular – e sofisticado em sua forma narrativa, o trágico romance ambientado em Sevilha, na Espanha, entre Dom José e a cigana Carmem, segue comovendo gerações. Prosper Mérimée pertenceu à geração romântica, como Victor Hugo e Balzac. Este poderoso livro tornou-se um clássico multimídia já no século XIX. Gerou a mais famosa das óperas, e se Bizet soube embelezá-la com melodias inesquecíveis, sobreviverão aos tempos a trama intensa, apaixonante, e o desesperado amor de Dom José por Carmem.
A mulher é igual ao fel, mas tem dois bons momentos, um no leito e outro na morte.
Palladas [1]
[1]. Poeta grego do século V a.C. (N.T.)
Capítulo Primeiro
Sempre suspeitei que os geógrafos não sabem o que dizem quando localizam o campo da batalha de Munda[1] no país dos Bastuli-Poeni[2], junto à moderna Monda, duas léguas ao norte de Marbella. Segundo minhas próprias conjecturas a partir do texto de autor anônimo, Bellum Hispaniense[3], e algumas informações recolhidas na excelente biblioteca do duque de Osuna, julgava ser necessário procurar nos arredores de Montilla o lugar memorável onde, pela última vez, César jogou a cartada decisiva contra os campeões da república. Encontrando-me em Andaluzia, no início do outono de 1830, fiz uma longa excursão buscando esclarecer as dúvidas que ainda me restavam. Um memorial que publicarei proximamente não deixará mais, creio, nenhuma incerteza no espírito de todos os arqueólogos de boa-fé. Esperando que minha dissertação resolva enfim o problema geográfico que mantém a Europa erudita em suspenso, quero lhes contar uma pequena história. Ela nada prejulga a respeito do interessante problema da localização de Munda.
Contratei em Córdoba um guia e dois cavalos e empreendi viagem com os Comentários de César e algumas camisas como única bagagem. Certo dia, vagando na parte elevada da planície de Cachena, vencido pela fadiga, morrendo de sede, ardendo sob um sol de chumbo, desejando mandar ao diabo César e os filhos de Pompeia, percebi, um tanto distante do atalho que seguia, um pequeno relvado verde, salpicado de juncos e de caniços. Anúncio da proximidade de uma nascente. De fato, ao me aproximar, vi que o pretenso relvado era um pântano no qual desaguava um riacho que saía, aparentemente, de uma garganta estreita entre dois altos contrafortes da serra da Cabra. Concluí que, acima, encontraria água mais fresca, sem sanguessugas e rãs, e talvez um pouco de sombra no meio dos rochedos. À entrada da garganta, meu cavalo relinchou, e um outro cavalo, que eu não via, respondeu de imediato. Mal havia dado uma centena de passos e a garganta, alargando-se bruscamente, me mostrou uma espécie de arena natural perfeitamente protegida pela sombra das escarpas que a rodeavam. Seria impossível encontrar um lugar que oferecesse ao viajante um pouso mais agradável. Ao pé dos rochedos íngremes, a nascente se lançava borbulhante e caía numa pequena bacia atapetada por uma areia branca como a neve. Cinco ou seis belas azinheiras, sempre ao abrigo do vento e refrescadas pela nascente, elevavam-se nas margens e a cobriam com sua sombra espessa. Enfim, em torno da bacia, uma erva fina, lustrosa, oferecia o melhor leito que se poderia encontrar em albergues num círculo de dez léguas.
Não me cabe a honra da descoberta de um lugar tão belo. Um homem lá estava, repousando, e sem dúvida dormia quando cheguei. Despertado pelos relinchos, ele se levantou, aproximando-se de seu cavalo, que havia aproveitado o sono do dono para fazer uma refeição nos pastos dos arredores. Era um jovem rapagão de aparência robusta, olhar lúgubre e altivo. Sua tez, que podia ter sido bela, tornara-se, pela ação do sol, mais escura do que seus cabelos. Numa das mãos ele segurava os arreios de sua montaria e, na outra, um bacamarte de cobre. Confesso que à primeira vista o bacamarte e o ar arredio do homem me surpreenderam um pouco. Mas eu não acreditava mais em ladrões, de tanto que deles ouvira falar e pelo fato de não encontrá-los nunca. Além disso, eu havia visto tantos granjeiros honestos armarem-se até os dentes para ir ao mercado, que a visão de uma arma de fogo não me autorizava a colocar em dúvida a honestidade do desconhecido.
Ademais, disse a mim mesmo, o que ele faria com minhas camisas e meus Commentaires Elzévir?[4] Saudei portanto o homem do bacamarte com um amistoso movimento de cabeça e lhe perguntei, sorrindo, se havia perturbado seu sono. Sem responder, me mediu da cabeça aos pés, e depo