Quando o século XX raiou, o tecido da realidade, a barreira mística que separa os mundos físico e espiritual, adensou-se. Os novos meios de transporte, as ferrovias e os barcos a vapor levaram o progresso aos cantos mais distantes do globo, pervertendo os nódulos mágicos, apagando o poder dos velhos santuários, afastando os mortais da natureza divina. Isolados no Sexto Céu, incapazes de enxergar a terra justamente pelo agravamento do tecido, a casta dos malakins, cuja função é estudar e catalogar os movimentos do cosmo, solicitou ao arcanjo Miguel a criação de uma brigada que descesse à Haled para pesquisar os avanços da civilização. O príncipe ofereceu o serviço dos exilados, que há milênios atuavam na sociedade terrestre, alheios às batalhas que se desenrolavam no paraíso. Destacados, então, para servir sob as ordens dos malakins, esses exilados foram reorganizados sob a forma de um esquadrão de combate. Sua tarefa, a partir de agora, seria participar das guerras humanas, disfarçados de meros recrutas, para anotar as façanhas militares, as decisões de campanha, e depois relatá-las aos seus superiores celestes. Esse esquadrão tomou parte em todos os conflitos do século XX, das sangrentas praias da Normandia ao colapso da União Soviética. Embora muitos não desejassem matar, era exatamente isso o que lhes foi ordenado, e o que infelizmente acabaram fazendo. Em paralelo às aventuras de Denyel, que se desenrolam cronologicamente de 1944 a 1989, acompanhamos também, no tempo presente, a jornada de Kaira e Urakin em busca do amigo perdido, que caíra nas águas douradas do rio Oceanus, durante a destruição da ilha-fortaleza de Athea em Herdeiros de Atlântida.
Anjos da Morte – Filhos do Éden Vol. 2 – Eduardo Spohr
Livro Escaneado, Formatado e Revisado por Lucia Garcia
Formato ePub produzido por:
APRESENTAÇÃO
Tirem as crianças da sala
PÓLVORA, NAPALM, SANGUE E LÁGRIMAS. SE ME PERGUNTASSEM EM POUCAS PALAVRAS, EU DIRIA QUE É DISSO QUE É FEITO ESTE LIVRO.
Depois de um ano e meio aquartelado em meu escritório, entre torradas de queijo e canecas de café forte, posso afirmar com certeza que Filhos do Éden: Anjos da Morte é o romance que eu sempre quis escrever, o que me deu mais prazer e também mais trabalho. Lá se foram unhas roídas, horas de pesquisa (algumas in loco), noites em claro revisando os capítulos, e finalmente o resultado é este que você tem em mãos.
Desde que tracei as primeiras linhas de A Batalha do Apocalipse, no longínquo verão de 2002, eu já alimentava a ideia de escrever, quem sabe um dia, uma obra ambientada no século XX, tendo as grandes guerras como plano de fundo. Infelizmente (ou felizmente), o enredo final de A Batalha não me permitiu explorar em detalhes a história contemporânea, deixando-me sem opção a não ser engavetar o projeto. A oportunidade ressurgiria então com a série Filhos do Éden, mais especialmente com o personagem Denyel, um dos querubins exilados que integrou, de 1914 a 1989, o esquadrão dos anjos da morte, celestes ordenados a viver na terra como pessoas comuns e a se alistar, de tempos em tempos, nos conflitos humanos, assumindo postos de batalha segundo a determinação (e o capricho) dos seus senhores, os malakins.
Este projeto (a realização dele, melhor dizendo) sempre foi para mim um sonho de infância, um tanto sádico talvez, porque desde criança sou fascinado por histórias de guerra. Curiosidade bizarra? Sede de sangue? Puro sadismo? Não, nada disso. Com efeito, as notícias que nos chegam do front nos tocam porque é no momento da morte que a verdadeira natureza humana insurge, com toda a sua força. É diante do desespero que somos catapultados aos nossos limites, que os parâmetros sociais se quebram, e o que resta é o homem em seu estado mais puro. É nesse instante que nos superamos, que cometemos os atos mais bárbaros, que nos sacrificamos, que nos tornamos monstros, santos, heróis ou selvagens.
Escrever sobre guerras não é uma tarefa fácil. O maior problema, a meu ver, é a insistência, seja por parte dos governos ou da opinião pública em geral, em tratar os soldados como mera estatística, então o que um romancista precisa fazer é se focar não nas operações militares, mas no indivíduo, realçar o esforço particular dos combatentes e, ao mesmo tempo, não glorificar os atos de guerra, não tomar partido e não fazer julgamento de fatos históricos.
Com o avanço dos capítulos você perceberá, então, que este é um livro totalmente diferente dos meus trabalhos anteriores. Pela primeira vez, tomei a decisão de construir o enredo com foco nos personagens e não em determinado evento ou missão, um recurso que os americanos costumam chamar de character-driven. Nasceu assim uma narrativa mais adulta e sombria, com uma forte carga dramática e voltada, sobretudo, para a psicologia de Denyel e seu gradual processo de corrupção. O que importa, agora, não é o que se passa no mundo, mas a resposta do protagonista a tais episódios. Diante disso, Anjos da Morte se tornou (mesmo para mim) uma obra imprevisível em vários aspectos: eu sabia o que aconteceria a cada página, só não sabia como. E quem determinou esse como foi o próprio Denyel ao longo da história, e não o roteiro que eu havia previamente traçado.
Mas nem só de espoleta é feito este tomo. No ínterim entre as aventuras ocorridas no passado, saltaremos ao presente para acompanhar a jornada de Kaira, Urakin e Ismael, um novo personagem que se junta ao coro, e sua missão de resgatar o amigo exilado. Esses trechos, é bom saber de antemão, são enigmáticos por natureza e servem como um mosaico da trilogia, um quebra-cabeça que precisa ser montado peça por peça e cujo significado só será revelado no terceiro volume — Filhos do Éden: