Armand Duval é um jovem estudante de Direito na Paris de meados do século XIX. Jovem recatado, vindo de uma respeitável família burguesa interiorana, apaixona-se por Marguerite Gautier, nada mais nada menos que a mais cobiçada cortesã dos salões e teatros parisienses. Marguerite – vendida, corrompida, perdulária, amante de vários homens – corresponde ao amor do jovem, que provoca uma reviravolta na vida da jovem prostituta. Mas o futuro dos dois amantes enfrenta os mais rígidos obstáculos. Escrito pelo francês Alexandre Dumas filho a partir da sua experiência autobiográfica com a cortesã Marie Duplessis, A dama das camélias é uma das mais célebres narrativas longas do século XIX – o próprio século de ouro do romance europeu.
A Dama das Camélias – Alexandre Dumas
A DAMA DAS CAMÉLIAS
I
Sou da opinião de que só se pode criar personagens quando já se estudou muito os seres humanos, assim como só se pode falar uma língua na condição de tê-la aprendido a sério.
Não tendo ainda atingido a idade em que se pode inventar, contento-me em relatar.
Exorto o leitor a se convencer da veracidade desta história, da qual todos os personagens, com exceção da heroína, ainda vivem.
Aliás, em Paris há testemunhas da maior parte dos fatos que aqui compilo, e que poderiam confirmá-los, não fosse o meu testemunho o suficiente. Devido a uma circunstância toda especial, apenas eu posso descrevê-los, pois apenas eu fui o confidente dos últimos detalhes sem os quais seria impossível fazer um relato interessante e completo.
Ora, eis como esses detalhes chegaram ao meu conhecimento: no dia 12 do mês de março do ano de 1847, eu vi, na rua Laffitte, um grande cartaz amarelo anunciando um leilão de móveis e de curiosos objetos de valor. Tratava-se de uma venda póstuma. O anúncio não indicava quem era a pessoa morta, mas o leilão aconteceria na rua d’Antin, no 9, do meio-dia às cinco horas do dia 16.
O anúncio dizia ainda que era possível visitar o apartamento e ver os móveis nos dias 13 e 14.
Sempre fui um amante das curiosidades. Prometi a mim mesmo não perder essa ocasião. Senão para comprar, pelo menos para ver.
No dia seguinte, me dirigi à rua d’Antin, no 9.
Era cedo, e, entretanto, já havia visitantes no apartamento e até mesmo senhoras que, mesmo vestidas com veludos, cobertas de caxemira e aguardadas à porta por seus elegantes cupês, observavam com estarrecimento, até mesmo com admiração, o luxo que se desfraldava ante seus olhos.
Mais tarde entendi essa admiração e essa surpresa, pois, pondo-me também a examinar, reconheci facilmente que eu estava no apartamento de uma cortesã. Ora, se há algo que as mulheres da alta sociedade desejam ver – e lá havia mulheres da alta roda – é a intimidade dessas mulheres, cujo séquito macula a cada dia os seus, que têm, como as damas da sociedade, o seu assento no Opéra e no Theâtre Italiens e que esparramam, em Paris, a insolente opulência de sua beleza, de suas joias e de seus escândalos.
Aquela em cuja casa eu me encontrava estava morta: as mulheres mais virtuosas podiam, então, penetrar no seu quarto. A morte purificara o ar daquela esplêndida sarjeta, e, aliás, elas tinham como desculpa – se é que havia necessidade disso – que compareciam a uma venda sem saber à casa de quem vinham. Viram anúncios, queriam examinar aquilo que os cartazes prometiam e fazer suas escolhas com antecipação, nada mais simples. O que não as impedia de procurar, em meio a todas aquelas maravilhas, traços da vida cortesã da qual haviam-lhes feito, sem dúvida, relatos tão estranhos.
Infelizmente, os mistérios haviam sido enterrados com a deusa, e, apesar de toda a boa vontade, aquelas damas encontraram apenas aquilo que fora posto à venda depois da morte, e nada daquilo que se vendia durante a vida da locatária.
De resto, podia-se fazer compras. O mobiliário era magnífico. Móveis de madeira rosa, de jacarandá ou de acaju, vasos de Sèvres e da China, estatuetas de porcelana da Saxônia, cetim, veludos e rendas. Não faltava nada.
Passeei pelo apartamento e segui as curiosas nobres que me haviam precedido. Entraram em um cômodo forrado de tecido persa, e também eu ia adentrar a peça quando elas de lá saíram quase que imediatamente, aos risinhos e como que com vergonha daquela nova curiosidade. De modo ainda mais intenso desejei penetrar naquele aposento. Era o quarto de banho, revestido dos mais minuciosos detalhes, nos quais a prodigalidade da morte parecia se mostrar ao mais alto grau.
Sobre uma grande mesa encostada à parede – uma mesa de três pés de largura por seis de comprimento – brilhavam todos os tesouros de Aucoe e de Odiot[1]. Uma coleção magnífica, e nenhum daqueles milhares de objetos, se necessários à toalete de uma mulher como aquela em cuja habitação estávamos, era feito