Daniel, Hoffmann, Carlos Henrique, Pedro Caroço. Cubano, argentino, brasileiro. Todos foram – são – José Dirceu, personagem cuja trajetória se confunde com a história da esquerda latino-americana na segunda metade do século XX, e particularmente com a do Brasil, já no século XXI. Dirceu foi líder estudantil em 1968, protagonista do histórico congresso da UNE em Ibiúna. Capturado, seria um dos presos trocados pelo embaixador americano. Expatriado e isolado em Cuba, quedou-se protegido por Fidel Castro, que o escolheria para comandar – já com um novo rosto – um foco guerrilheiro no Brasil. Desbaratado o movimento, encarcerados ou mortos cada um de seus integrantes, sobreviveria para mergulhar num longo período de clandestinidade, a ser somente interrompido, em 1979, pela anistia. Livre, conheceria o sindicalista Lula, fundaria o PT e se tornaria o mais afamado articulador político do petismo – mentor do programa que isolaria setores sectários do partido para construir a mais poderosa e inclemente máquina eleitoral da história do país. Em 2003, pela via democrática que não ajudara a construir, alcançaria o Palácio, ministro mais importante de um presidente eleito pela esperança. E então o mensalão… De súbito desempregado, era o mais novo consultor da República, capitalista convicto, lobista feito milionário. E então o julgamento do mensalão… A condenação. Este livro discorre sobre os caminhos de um homem que é muitos, e sobre sua capacidade de se reinventar. É sobre o comandante Daniel, o argentino Hoffmann, o comerciante Carlos Henrique, o namorador Pedro Caroço. É sobre as escolhas, muito mais que os fins. É sobre a ambição e o desejo, muito mais que o poder.
DIRCEU: A BIOGRAFIA – Otavio Cabral
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Um golpe pela janela
“Um dia seu filho será presidente da República.’’
José Dirceu, aos 8 anos, para a mãe, dona Olga.
A noite era de festa na casa dos Oliveira e Silva, na pequena cidade mineira de Passa Quatro, na noite de 12 de outubro de 1968. A família se reuniu na sala para a primeira transmissão da televisão que o patriarca, seu Castorino, havia recebido de um consórcio poucas horas antes. Um televisor modesto, pequeno e em preto e branco, mas um dos primeiros a chegar à cidade de 11 mil habitantes, encravada na Serra da Mantiqueira, no Vale do Paraíba, divisa entre Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro. O aparelho enchia de orgulho Castorino e, principalmente, sua mulher, Olga. Os vizinhos invejavam a aquisição e se aboletavam à janela do sobrado para compartilhar a novidade. O noticiário da noite, porém, teve início com uma imagem que marcou para sempre a vida de dona Olga Guedes da Silva: seu filho José Dirceu era empurrado por policiais para um camburão que sumia na estrada de terra.
José Dirceu de Oliveira e Silva, o xodó de dona Olga, havia sido preso em um congresso clandestino da União Nacional dos Estudantes, em Ibiúna, cidade próxima a São Paulo, para onde migrara sete anos antes. O locutor descrevia o filho de Olga e Castorino como um dos líderes dos oitocentos estudantes que se reuniram em um sítio para conspirar contra o regime militar que governava o país havia quatro anos e meio. E previa que ele passaria um bom tempo na prisão, para servir de exemplo a outros jovens. Dona Olga deixou a família e as visitas na sala e foi chorar no quarto. Desde pequeno, Dirceu, o terceiro de seus seis filhos, lhe dera muito trabalho. A distância e a falta de comunicação do jovem, vivendo sozinho na cidade grande, lhe tiravam o sono. Imaginava que muita coisa ruim pudesse lhe acontecer. Mas cadeia foi além de seus piores pesadelos. Essa não era a primeira confusão em que se metia o rapaz nascido a 16 de março de 1946, naquela mesma casa. Era apenas a primeira transmitida em rede nacional de televisão.
Castorino era dono da gráfica Ordem e Progresso, a única da cidade, e militante da União Democrática Nacional, a UDN, o partido da direita católica. Educava com rigor seus sete filhos. Conheceu Olga na vizinha Cruzeiro, já no estado de São Paulo, onde seus parentes ganhavam a vida como ferroviários e ele costumava passar os finais de semana. Os filhos de Castorino precisavam ir à missa aos domingos, rezar antes das refeições, pedir a bênção para sair de casa e trabalhar desde cedo. Aos 8 anos, Dirceu já corria as ruas da cidade entregando pão; em seguida, caminhava pela linha do trem até o Grupo Escolar Presidente Roosevelt, onde cursou o primário. Foi nessa época que, em um surto de grandeza, disse à mãe antes de dormir: “Um dia seu filho será presidente da República.”2
Quando Dirceu tinha 10 anos, Castorino lhe conseguiu uma vaga no Ginásio São Miguel, mantido por padres franceses da ordem de Bétharram. Era o melhor colégio da região. E ainda por cima gratuito. Para tanto, Castorino teve de apelar a seus contatos políticos. Fora candidato a vice-prefeito, era um dos provedores da Santa Casa e em sua gráfica eram impressos os panfletos de todos os candidatos das redondezas. Dirceu lembra com carinho da temporada no São Miguel: “Lá havia uns vinte padres de umas dez nacionalidades, uma coisa fantástica! Convivi com homens de dez nacionalidades diferentes e tive uma educação de altíssimo nível.”3
Na escola, acuado pela disciplina severa dos religiosos, o garoto se continha, embora suas pregações agnósticas a partir dos 12 anos tenham lhe rendido algumas advertências e castigos. Cada vez que dizia que Deus não existia era um terço a mais a ser rezado. Na reincidência, sua mão queimava com golpes de palmatória. Longe dos padres, era outro. Amarrava barbante em rabo de cachorro, colocava bombinhas presas no rabo dos gatos, pulava muros de casa para roubar frutas, descia o rio em balsas feitas de folha de bananeira —