Digam a Satã que o Recado foi Entendido – Daniel Pellizzari

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Difícil dizer o motivo que levou Magnus Factor a prolongar sua curta estada em Dublin, Irlanda, para uma residência fixa e negócio próprio na capital mundial da cerveja escura e da briga de rua. Fácil é precisar o momento embaraçoso em que tudo aquilo havia acontecido. Um milk-shake e duas palavras erradas de uma eslava, às vezes é tudo que basta para o sujeito ficar onde está. Numa encruzilhada de turistas e imigrantes, Magnus abre uma agência de passeios por locais mal-assombrados de Dublin, todos inventados por ele. Seus sócios vêm da Polônia e das ilhas Maurício, e mesmo o único irlandês do grupo, contratado para dar autenticidade à iniciativa, se diz nascido na ‘República de Cork’. É o pretexto para Daniel Pellizzari, de volta à ficção após oito anos, criar em torno de Magnus um espiral de loucura e desespero que vai envolver terrorismo poético, cultos obscuros, traficantes gregos, um antigo deus cobra irlandês e um pouco do velho e bom amor itinerante. Em ‘Digam a Satã que o recado foi entendido’, Pellizzari dá voz aos profetas e perdedores de Dublin, captando com humor e empatia seus discursos ora atropelados, ora ternos, em meio a sequestros de tesouros nacionais, virgens suicidas, videogames e o eventual assassinato. Narrados numa prosa que lembra Irvine Welsh, Junot Díaz e Roberto Bolaño, os encontros improváveis desses idiotas extraordinários conduzirão o leitor rumo à inevitável conclusão de que, como diz a placa no pub favorito de Magnus, hoje é o amanhã que ontem nos preocupava, e tudo vai bem.

Go n-ithe an cat thú is go n-ithe an diabhal an cat. [Que o gato te engula e que o diabo engula o gato.] Maldição irlandesa Sumário Sobre a questão eslava Idiotas extraordinários Jesuis O último dodô Crianças do milho Sobre o autor sobre a questão eslava dois anos atrás Maio de 2007 Bealtaine 2007 Aí eu penso no sofrimento da jovem mulher feia na Rússia. Aos dezoito anos, uma garota russa que não seja estonteante deve se sentir um paquiderme. Em partes menos afortunadas do planeta a menina até que poderia ser considerada atraente, mas na Mãe Rússia isso não faz a menor diferença. Em pouco mais de uma década as coisas se invertem. Por volta do aniversário de trinta anos, obedecendo a uma coreografia genética, quase todas as russas incham de uma hora para a outra. Viram matronas amargas embaladas em vestidos floridos, escondem a cabeça com lenços que parecem feitos com trapo de cortina e dedicam o resto da vida a zanzar de um lado para o outro com sacolas abarrotadas de manteiga, vodca e batatas. Amargas, suspeito que sempre foram. Jovens russas são uma fruta de casca brilhante que atrai a mordida para só então se mostrar venenosa. É uma estratégia desprovida de qualquer sentido em termos evolutivos, mas estamos falando da Rússia. Não fazer sentido algum é o lema nacional. Aposto nesse absurdo entranhado nos cromossomos como origem das propriedades de bomba-relógio das mulheres russas. E talvez por isso todas venham acompanhadas por uma trilha sonora orquestral muito dramática, com direito a gongo e estouro de canhões. Basta olhar para uma jovem russa com um mínimo de atenção para compreender que ela pode explodir a qualquer momento. Pode estar montada em cima do camarada e de repente soluçar, cerrar os punhos e golpear o peito do infeliz, depois o colchão, agarrando os lençóis com força suficiente para rasgar, e depois erguer os olhos para o teto berrando fonemas guturais como se estivesse ajoelhada em frente a um trigal nas cercanias de Volgogrado, encarando os céus e amaldiçoando o destino. E mesmo assim, em meio aos murros, às lágrimas, à baba, aos soluços e à gritaria, continuar tão bela quanto as melhores tragédias. Um investimento de alto risco, as jovens russas. No fundo imagino que isso valha para todas as eslavas, mas me concentro nas russas porque estou rodeado delas. Esta noite, tudo que enxergo à minha volta são russos. Talvez sejam poloneses ou ucranianos, admito. Não sei. Mas são eslavos, disso tenho certeza: as mulheres presentes não me enganam. Escuto o drama e os guinchos da trilha sonora abafando o texas blues de quinta categoria que escapa das caixas de som. Bleu Note. Um nome afrancesado para um pub irlandês dedicado a um estilo musical americano e frequentado por eslavos. Cheguei aqui meio por acaso, caminhando a esmo pelas ruas idênticas do centro de Dublin ao norte do rio Liffey, ruas que mais parecem muralhas intermináveis de tijolos avermelhados. Chegando na esquina da Capel, abri caminho por entre uma pequena multidão de fumantes, cruzei as portas azuis, desci as escadas e fui parar no meio da Guerra Fria. Pareço ter voltado quase meio século no tempo e invadido por engano o porão do quartel-general da kgb. Todos os homens, invariavelmente corpulentos, vestem roupas sociais e têm a cabeça raspada ou o cabelo cortado muito rente, acentuando os maxilares angulosos. Alguns usam óculos escuros. Todos bebem com um ar que poderia ser chamado de solene se não fosse rude. E as mulheres, exceto as duas ruivas, são todas loiras. Descontando os russos, parece um pub como outro qualquer: meio escuro, meio barulhento, meio antigo, meio qualquer coisa. Uma atmosfera de suor alcoólico e perfume. Sento num dos bancos do balcão. Considero a ideia de pedir um pint de lager, mas acabo me decidindo por uma vodca dupla. Desta vez pode ser necessário me encaixar no ambiente. Minha solidão não chega a durar cinco minutos. Ainda estou no primeiro terço da vodca quando um russo
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