De Amor e De Sombra – Isabel Allende

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Esta história começa no ponto em que ‘A Casa dos Espíritos’ termina – durante o golpe militar da extrema direita que tirou do poder o presidente Salvador Allende, em 1973. A narrativa tem como pano de fundo a história de amor de Francisco e Irene, dois jovens jornalistas que residem no Chile, oprimido pela violência da ditadura militar. Filha de uma família tradicional, Irene vive alienada da realidade que se instaurou no país, e Francisco é um fotógrafo espanhol exilado. Ao descobrirem uma mina abandonada, onde os militares escondem os corpos dos presos políticos mortos nos porões das cadeias chilenas, Irene e Francisco arriscam a própria vida para salvar os perseguidos e angariar fundos para lhes suprimir a fome.

Primeira Parte OUTRA PRIMAVERA   Só o amor com a sua cadência, nos torna tão inocentes. Violeta Parra   O primeiro dia de sol evaporou a humidade acumulada na terra durante o Inverno e aqueceu os frágeis ossos dos anciãos, que, assim, puderam passear pelos caminhos ortopédicos do jardim. Apenas o melancólico permaneceu na cama, porque era inútil levá-lo para o ar puro: os seus olhos só viam os próprios pesadelos e os ouvidos estavam surdos ao alvoroço dos pássaros. Josefina Bianchi, a actriz, vestida com o longo traje de seda que usara meio século antes para declamar Tchekov e levando consigo uma sombrinha para proteger a pele de porcelana trincada, caminhava devagar entre os canteiros que em pouco tempo se cobririam de flores e besouros. - Pobres rapazes - sorriu a octogenária ao perceber um ligeiro movimento nos miosótis, adivinhando assim a presença dos seus admiradores, aqueles que a amavam no anonimato e se escondiam na vegetação, para a espreitar quando passava. O coronel deu uns passinhos miúdos, apoiado na cerca de alumínio que servia de suporte às suas pernas de algodão. Para festejar a Primavera que nascia e saudar a bandeira nacional, como fazia, sem falta, todas as manhãs, pusera no peito as medalhas de papelão e lata fabricadas para ele por Irene. Quando a agitação dos pulmões lho permitia, bradava ordens à tropa e mandava que os trémulos bisavôs se afastassem do Campo de Marte, onde a infantaria podia esmagá-los com o seu garboso passo de desfile e as botas envernizadas. A bandeira ondulou ao ar como uma invisível ave de rapina junto ao fio dos telefones e os seus soldados perfilaram-se direitos, olhando em frente, enquanto os tambores rufavam e vozes viris entoavam o sagrado hino que só os seus ouvidos escutavam. Foi interrompido por uma enfermeira em uniforme de batalha, silenciosa e dissimulada como em geral são essas mulheres, munida de um guardanapo para limpar-lhe a baba que corria pelas comissuras dos lábios e lhe molhava a camisa. Tentou oferecer-lhe uma condecoração ou uma promoção, mas ela deu meia volta e deixou-o depois de o ter, com o gesto suspenso, avisado de que, se emporcalhasse as calças, lhe daria três palmadas, porque estava farta de limpar porcaria alheia. De quem fala esta insensata?, perguntou-se o coronel, deduzindo que, sem dúvida, a enfermeira se referia à mais rica viúva do reino. Só ela usava cueiros no acampamento, devido a uma ferida de canhão que lhe deu cabo do sistema digestivo e a meteu para sempre numa cadeira de rodas, mas nem mesmo por isso era respeitada. Quando menos esperava, roubavam-lhe os ganchos e as fitas, pois o mundo está cheio de velhacos e trepaceiros. - Ladrões! Roubaram-me os chinelos! - gritou a viuva. - Cale-se, avó, os vizinhos podem ouvi-la - ordenou-lhe a enfermeira, movendo a cadeira para que ela ficasse ao sol. A inválida continuou a vociferar acusações até ficar sem ar e teve que se calar para não morrer, mas mesmo assim restaram-lhe forças para indicar com um dedo artrítico o sátiro que, às escondidas, abria a braguilha para mostrar o seu pénis deplorável às senhoras. Nenhuma delas se preocupava com o facto, a não ser uma pequena dama vestida de luto, que observava aquele figo seco com certa ternura. Estava apaixonada pelo seu dono e, à noite, deixava a porta do seu aposento aberta para que ele tomasse uma resolução. - Rameira! - resmungou a viúva abastada, mas não sem evitar um sorriso, porque, de repente, lembrou-se de tempos idos quando ainda tinha marido e este pagava com patacões de ouro o privilégio de ser recebido entre as suas largas coxas, o que acontecia com bastante frequência. Chegou a ter uma bolsa cheia, tão pesada que nenhum marinheiro podia carregá-la aos ombros. - Onde é que estão as minhas moedas de ouro? - De que está falando, avó? - respondeu distraída a empregada atrás da cadeira de rodas. - Roubaste-mas! Vou chamar a polícia! - Não me chateie, velha - respondeu a outra sem se alterar. Tinham ajeitado o paralítico num banco, com
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