Sobre os deveres cívicos. Sócrates, modelo de cidadão, renuncia salvar sua vida para permanecer fiel às leis de Atenas, às quais dá um sentido religioso, como expressão da vontade de Deus.
Críton, tenta convencer Sócrates, de quem é discípulo, a fugir da execução de sua sentença de morte. Sócrates discorda e reafirma que sente que deve seguir a razão, (por julgar isto o mais correto) mesmo que essa a leve a morte.
No texto de Críton, encontra-se um forte debate acerca da justiça, da doxa e episteme, por onde Sócrates defende a posição da razão frente ao discurso do povo (representado por Críton).
Críton (o dever) – Platão
De Platão, CRITÃO (Críton), ou o DEVERExtraído do livro Diálogos, da coleção Clássicos Cultrix.Tradução: Jaime Bruna.Personagens: Sócrates e Critão, dois velhos.Cena: Uma cela, na prisão de Atenas.Sócrates-Por que viestes a estas horas, Critão? É madrugada ainda, não é?Critão- Perfeitamente.Sócrates- Que horas, precisamente?Critão- Mal começa a clarear.Sócrates- Admira-me que o guarda da prisão te haja atendido.Critão- Ele já se acostumou comigo, Sócrates, de tanto eu freqüentar este lugar;
ademais, deve-me alguns favores.Sócrates- Acabas de chegar ou faz tempo?Critão- Faz já algum tempo.Sócrates- Então, porque não me acordaste logo e sentaste aí calado?Critão- É que, por Zeus, Sócrates, em teu lugar, eu não gostaria de passar muito
tempo acordado numa aflição assim; estou mesmo admirando, há tempo, a placidez
do teu sono. Não te acordei de propósito; para que pudesses gozar quanto mais
dessa tranqüilidade. Já muitas vezes antes, em toda a nossa vida, te considerei feliz
pelo teu gênio, porém muito mais agora, na presente desgraça, pela facilidade e
brandura com que a suportas.
Sócrates-Realmente, Critão, eu destoaria, se na minha idade, me agastasse por ter
de morrer em breve.Critão- Outros também, Sócrates, passam por provações assim na mesma idade; no
entanto, os anos não os dispensam de se agastarem com a sorte que lhes toca.Sócrates- Assim é. Mas, afinal, para que vieste tão cedo?Critão-Para trazer uma notícia, Sócrates, dolorosa e desoladora - não assim para ti,
pelo que vejo - mas dolorosa e desoladora para mim e para todos os teus amigos;
acho que a poderia contar como uma das que mais o sejam.Sócrates- Que vem a ser? Chegou de Delos o navio a cuja chegada devo morrer?Critão- Bem, chegar não chegou, mas calculo que deve aportar hoje, pelo que
noticiam pessoas vindas de Súnio e que lá o deixaram. As novas dão a entender
que vai aportar hoje, e será fatalmente amanhã, Sócrates que terás de cessar de
viver.Sócrates- Pois bem, Critão, à boa ventura! Se assim apraz aos deuses, assim seja.
Todavia, acho que não vai aportar hoje.Critão- Em que te baseias?Sócrates- Vou dizê-lo. Devo morrer, penso, no dia seguinte ao da chegada do
navio.Critão- Ao menos assim dizem as autoridades competentes.Sócrates- Por isso, acho que não vai aportar no dia de hoje, mas no de amanhã.
Baseio -me num sonho que acabo de ter esta noite. Talvez mesmo tenha sido
oportuno não me haveres despertado.Critão- Como foi o sonho? Sócrates- Parecia-me que vinha uma mulher formosa,
de lindas feições, vestida de branco, me chamava e dizia: "Sócrates, depois de
amanhã poderás ter chegado às férteis campinas de Fétia".Critão- Sonho esquisito, Sócrates!Sócrates- De sentido claro, ao que penso, Critão.Critão- Por demais, penso eu. Contudo, meu pobre Sócrates, ainda uma vez, dá-me
ouvidos e põe-te a salvo; porque, para mim, se vieres a morrer, a desdita não será uma só; à parte a perda de um amigo como não acharei nenhum igual, acresce que
muita gente, que não nos conhece bem, a mim e a ti, pensará que eu, podendo
salvar-te, se me dispusesse a gastar dinheiro, não me importei. Ora, existe
reputação vergonhosa do que a de fazer caso do dinheiro que dos amigos? 0 povo
não vai acreditar que tu é que não quiseste sair daqui, a despeito de o querermos
nós mais que tudo.
Sócrates- Mas para nós, meu caro Critão, é tão importante assim a opinião do
povo? A gente melhor, com quem mais importa que nos preocupemos, cuidará que
as coisas se terão passado tal como se tiverem passado.Critão- Mas bem vês, Sócrates, que não se pode deixar de fazer caso também da
opinião do povo. Os fatos mesmos de agora dizem claro que o povo é capaz de
fazer, não os mais pequeninos dos males, mas como que os maiores; basta que
entre eles se espalhem calúnias contra alguém.Sócrates- Oxalá, Critão, fosse o povo capaz de praticar os maiores males, para ser
capaz também dos maiores benefícios! Seria esplêndido. Não o é, porém, nem
destes nem daqueles. I