Na juventude, o escritor israelense Amós Oz viveu em um kibutz – uma fazenda coletiva. Hoje, ele mora em Arad, pequena cidade do Deserto de Negev. A experiência da vida em localidades pequenas e isoladas transparece nesta coletânea – sete dos oito contos têm lugar em uma aldeia fictícia, Tel Ilan. Não é uma visão compassiva: são contos muitas vezes amargos, com personagens que buscam a aldeia não pela suposta vida simples do interior, mas para se refugiar de vilezas e mesquinharias do passado. Um dos maiores escritores de seu país, Oz, de 70 anos, é conhecido como uma personalidade atuante – e uma voz moderada – no conturbado cenário político de Israel. Mas se irrita com os críticos que tentam ler alegorias políticas em seus contos: “A ação do livro transcorre em Israel, mas ele não trata da condição israelense, e sim da condição humana”, disse em entrevista ao jornal Haaretz.
Cenas da Vida na Aldeia – Amós Oz
Sumário
Os que herdam
Os que são próximos
Os que cavam
Os que se perdem
Os que esperam
Os que são estranhos
Os que cantam
Longe dali, em outro tempo
Os que herdam
1.
O estranho não lhe era estranho. Alguma coisa em sua aparência repeliu e ao mesmo tempo atraiu Arie Tselnik desde o primeiro olhar, se é que aquele era o primeiro olhar: Arie Tselnik tinha quase a impressão de que se lembrava daquele rosto e dos compridos braços que chegavam aos joelhos, uma lembrança obscura, como se fosse de uma vida anterior.
O homem estacionou seu carro bem em frente ao portão do pátio, um automóvel empoeirado, de cor bege. E no vidro traseiro, assim como nos vidros laterais, havia um mosaico de adesivos coloridos, toda sorte de exclamações, declarações, alertas e lemas. Ele trancou a porta do carro, mas deteve-se para examinar diligentemente uma porta após outra, verificando se estavam todas bem trancadas. Depois deu uma leve palmada no capô, e logo outra, como se o carro fosse um velho e fiel cavalo que ele prendia à estaca da cerca, sinalizando-lhe com carinhosos tapinhas que a espera não seria longa. Depois disso abriu o portão e dirigiu-se à varanda da frente, sombreada por um caramanchão de videiras. Seu andar parecia saltitante e um pouco dolorido, como se pisasse descalço em areia quente.
De seu lugar, na cadeira de balanço suspensa no canto da varanda, vendo sem ser visto, Arie Tselnik observava o visitante desde que ele estacionara o carro. Mas, por mais que se esforçasse, não conseguia lembrar quem era esse estranho-não-tão-estranho. Onde o encontrara, quando o encontrara? Em uma de suas viagens ao exterior? Nos exercícios militares de reservistas? No escritório? Na universidade? Ou talvez ainda nos tempos de escola? A fisionomia do estranho tinha uma expressão matreira e radiante, como se tivesse conseguido dar um grande golpe e agora se alegrasse com a desgraça alheia. Por trás daquele rosto estranho, ou por baixo dele, delineava-se o esboço impreciso de um rosto conhecido, incomodativo, um rosto inquietante: o rosto de quem já lhe fizera mal alguma vez? Ou, pelo contrário, de alguém a quem você já tivesse feito um mal agora esquecido?
Como um sonho do qual nove décimos tivessem submergido e só um pequeno pedaço ainda fosse visível.
Arie Tselnik decidiu então não se levantar do lugar para ir ao seu encontro, mas recebê-lo ali, na cadeira suspensa, na varanda à entrada da casa.
O estranho avançou em seu andar saltitante pelo caminho sinuoso que levava do portão aos degraus da varanda, seus olhos pequenos a se moverem sem parar da direita para a esquerda, como que preocupado em não se revelar prematuramente ou, ao contrário, como se temesse que um cão feroz pudesse a qualquer momento se lançar sobre ele dos arbustos da buganvília espinhosa que cresciam nos dois lados do caminho.
O cabelo amarelado já se tornando ralo, o pescoço vermelho cuja pele enrugada e pelancuda lembrava o papo de um peru, os olhos aguados e baços que se agitavam como dedos tateantes, os compridos braços de chimpanzé — tudo nele despertava uma turva sensação depressiva.
De seu oculto ponto de observação na cadeira suspensa, à sombra dos galhos da videira trepadeira, Arie Tselnik percebeu que o homem era corpulento, mas que fraquejava um pouco, como que só recentemente restabelecido de doença grave, ou como se até pouco tempo atrás fosse gordo e só ultimamente tivesse se encolhido para dentro, se contraído dentro da própria pele. Até o paletó de verão que vestia, com seus bolsos estufados e sua cor bege escura, parecia largo demais, descuidadamente pendurado em seus ombros.
Embora fosse fim de verão e o caminho estivesse seco, o estranho se deteve para esfregar bem as solas dos sapatos no capacho ao pé dos degraus. Quando acabou, levantou um pé após outro e verificou se elas estavam limpas. Satisfeito, subiu os degraus e examinou a porta de tela no alto, e, só depois de bater educadamente algumas vezes sem obter resposta, desviou finalmente o olhar e