Narrada em primeira pessoa, a história de Lúcio é a história de um crime e de uma confissão. Depois de dez anos de prisão, onde cumprira pena por ter assassinado o poeta Ricardo Loureiro, Lúcio é solto e começa a contar sua história para, segundo ele, demonstrar sua inocência. À medida que relata os fatos que antecederam o crime, as lembranças se embaralham, perdem a nitidez, e a ambiguidade toma conta da narrativa. O que o leitor acompanha é a reconstrução fragmentada do passado de Lúcio, amigo íntimo de Ricardo Loureiro e de sua esposa, Marta, uma mulher misteriosa que, às vezes, parece não ter existência própria. A convivência entre eles faz nascer em Lúcio um grande desejo por Marta. Tornam-se amantes. Passado algum tempo, ele descobre que não é seu único amante. Desespera-se de ciúmes quando descobre que ela se encontra também com Sérgio Warginsky, um artista russo que frequenta sua casa. Lúcio passa a sentir ódio por Ricardo, pois desconfia que ele está a par de tudo. Rompe com o amigo. Quando se reencontram, tempos depois, Ricardo lhe confirma a desconfiança e explica que, só possuindo fisicamente o objeto de sua amizade, poderia senti-la verdadeiramente. Mas, como possuir seus amigos? Através de sua mulher. Alucinado, Ricardo quer provar a Lúcio que o valoriza acima de tudo e de todos. Arrasta-o até sua casa, entra nos aposentos de Marta e mata-a com um tiro. Mas, quem está no chão, sem vida, não é Marta, e sim Ricardo. E aos pés de Lúcio está o revólver homicida. Quem é o assassino? Quem é a vítima? Marta era real ou não passava de uma projeção da atração sexual que Ricardo e Lúcio sentiam um pelo outro e da atração que Ricardo sentia por outros amigos, de quem Lúcio tinha ciúmes doentios? No julgamento, ninguém acreditou na história contada por Lúcio. Ele mesmo, aliás, não se esforçou em fazer com que os jurados acreditassem. E os dez anos de cadeia foram uma espécie de repouso para sua alma atormentada.
A Confissão de Lúcio – Mário de Sá-Carneiro
A Confissão de Lúcio
Mário de Sá-Carneiro
Projecto Adamastor
Ficha Técnica
Título: A Confissão de Lúcio
Autor: Mário de Sá-Carneiro
Data Original de Publicação: 1914
Data Publicação eBook: 2013
Capa: Ana Ferreira
Imagem de Capa: Flirt, de Alfons Mucha
Revisão: Ricardo Lourenço
Esta obra foi revista segundo o Acordo Ortográfico de 1945, com base na digitalização disponível na Biblioteca Digital da Casa Fernando Pessoa.
Este trabalho foi licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-CompartilhaIgual 3.0 Não Adaptada.
Cumpridos dez anos de prisão por um crime que não pratiquei e do qual, entanto, nunca me defendi; morto para a vida e para os sonhos; nada podendo já esperar e coisa alguma desejando — eu venho fazer enfim a minha confissão: isto é: demonstrar a minha inocência.
Talvez não me acreditem. Decerto que não me acreditam. Mas pouco importa. O meu interesse hoje em gritar que não assassinei Ricardo de Loureiro, é nulo. Não tenho família; não preciso que me reabilitem. Mesmo, quem esteve dez anos preso, nunca se reabilita. A verdade simples, é esta.
E àqueles que, lendo o que fica exposto, me perguntarem: « — Mas porque não fez a sua confissão quando era tempo? porque não demonstrou a sua inocência ao tribunal?» — a esses responderei: — A minha defesa era impossível. Ninguém me acreditaria. E fora inútil fazer-me passar por um embusteiro ou por um doido… Demais, devo confessar, após os acontecimentos em que me vira envolvido nessa época, ficara tão despedaçado que a prisão se me afigurava uma coisa sorridente. Era o esquecimento, a tranquilidade, o sono. Era um fim como qualquer outro — um termo para a minha vida devastada. Toda a minha ânsia foi pois de ver o processo terminado e começar cumprindo a minha sentença.
De resto, o meu processo foi rápido. Oh! o caso parecia bem claro… Eu nem negava nem confessava. Mas quem cala consente… E todas as simpatias estavam do meu lado.
O crime era, como devem ter dito os jornais do tempo, um «crime passional». Cherchez la femme. Depois, a vítima um poeta — um artista. A mulher romantizara-se desaparecendo. Eu era um herói, no fim de contas. E um herói com seus laivos de mistério, o que mais me aureolava. Por tudo isso, independentemente do belo discurso de defesa, o júri concedeu-me circunstâncias atenuantes. E a minha pena foi curta.
Ah! foi bem curta — sobretudo para mim… Esses dez anos esvoaçaram-se-me como dez meses. É que, em realidade, as horas não podem mais ter acção sobre aqueles que viveram um instante que focou toda a sua vida. Atingido o sofrimento máximo, nada já nos faz sofrer. Vibradas as sensações máximas, nada já nos fará oscilar. Simplesmente, este momento culminante raras são as criaturas que o vivem. As que o viveram ou são, como eu, os mortos-vivos, ou — apenas — os desencantados que, muita vez, acabam no suicídio.
Contudo, ignoro se é felicidade maior não se existir tamanho instante. Os que o não vivem, têm a paz — pode ser. Entretanto não sei. E a verdade é que todos esperam esse momento luminoso. Logo, todos são infelizes. Eis pelo que, apesar de tudo, eu me orgulho de o ter vivido.
Mas ponhamos termo aos devaneios. Não estou escrevendo uma novela. Apenas desejo fazer uma exposição clara de factos. E para a clareza, vou-me lançando em mau caminho — parece-me. Aliás, por muito lúcido que queira ser, a minha confissão resultará — estou certo — a mais incoerente, a mais perturbadora, a menos lúcida.
Uma coisa garanto porém: Durante ela não deixarei escapar um pormenor, por mínimo que seja, ou aparentemente incaracterístico. Em casos como o que tento explanar, a luz só pode nascer duma grande soma de factos. E são apenas factos que eu relatarei. Desses factos, quem quiser, tire as conclusões. Por mim, declaro que nunca o experimentei. Endoideceria, seguramente.
Mas o que ainda uma vez, sob minha palavra de honra, afirmo é que só digo a verdade. Não me importa que me acreditem, mas só digo a verdade — mesmo quando ela é