Verity – Colleen Hoover

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O amor é capaz de superar a pior das verdades?

Verity Crawford é a autora best-seller por trás de uma série de sucesso. Ela está no auge de sua carreira, aclamada pela crítica e pelo público, no entanto, um súbito e terrível acidente acaba interrompendo suas atividades, deixando-a sem condições de concluir a história… E é nessa complexa circunstância que surge Lowen Ashleigh, uma escritora à beira da falência convidada a escrever, sob um pseudônimo, os três livros restantes da já consolidada série.

Para que consiga entender melhor o processo criativo de Verity com relação aos livros publicados e, ainda, tentar descobrir seus possíveis planos para os próximos, Lowen decide passar alguns dias na casa dos Crawford, imersa no caótico escritório de Verity – e, lá, encontra uma espécie de autobiografia onde a escritora narra os fatos acontecidos desde o dia em que conhece Jeremy, seu marido, até os instantes imediatamente anteriores a seu acidente – incluindo sua perspectiva sobre as tragédias ocorridas às filhas do casal.

Quanto mais o tempo passa, mais Lowen se percebe envolvida em uma confusa rede de mentiras e segredos, e, lentamente, adquire sua própria posição no jogo psicológico que rodeia aquela casa. Emocional e fisicamente atraída por Jeremy, ela precisa decidir: expor uma versão que nem ele conhece sobre a própria esposa ou manter o sigilo dos escritos de Verity?

1 Ouço o barulho do crânio se quebrando antes mesmo de o sangue respingar em mim. Eu me assusto e dou um passo para trás, para a calçada. O salto de um dos meus sapatos fica preso no meio-fio e preciso me segurar na placa de PROIBIDO ESTACIONAR para não cair. O homem estava na minha frente havia poucos segundos. Estávamos no meio da multidão esperando o sinal abrir quando ele resolveu atravessar antes da hora e acabou atingido por um caminhão. Eu tentei segurá-lo, mas só consegui agarrar o ar enquanto ele era atropelado. Fechei os olhos antes que o pneu do caminhão passasse por cima da cabeça dele, mas a ouvi estourar como se fosse uma rolha saindo de uma garrafa de champanhe. Ele cometeu um erro. Ficou olhando a tela do celular, sem prestar atenção, provavelmente por já estar acostumado a atravessar aquela mesma rua todos os dias sem qualquer incidente. Causa da morte: rotina. As pessoas suspiram, mas ninguém grita. O motorista do caminhão salta do veículo e imediatamente se ajoelha ao lado do corpo do homem. Prefiro me afastar da cena enquanto outras pessoas se aproximam para ajudar. Não preciso olhar o homem embaixo do pneu para saber que está morto. Basta olhar minha blusa que um dia foi branca — e todo o sangue respingado nela — para saber que ele precisa de um carro funerário e não de uma ambulância. Tento sair dali e achar um lugar para respirar, mas agora o sinal está aberto para os pedestres, a multidão se movimenta, e é impossível nadar contra a corrente naquele mar de pessoas no meio de Manhattan. Algumas nem desviam os olhos dos celulares ao passar pelo acidente. Fico parada e espero a multidão se dispersar. Viro meu rosto de relance para o acidente, com o cuidado de não olhar diretamente para o homem. O motorista do caminhão agora está na parte de trás do veículo, falando ao telefone, com os olhos arregalados. Três ou quatro pessoas estão por ali ajudando. Alguns filmam aquela cena macabra com seus celulares, movidos por uma curiosidade mórbida. Se eu ainda morasse na Virgínia, a cena seria completamente diferente. Todo mundo simplesmente ia parar. O pânico estaria instalado, as pessoas começariam a gritar, uma equipe de TV chegaria em questão de minutos. Mas atropelamentos são tão comuns em Manhattan que não passam de um inconveniente. Um atraso no trânsito para uns, uma roupa estragada para outros. Acontece com tanta frequência que nem vai sair no jornal. Ainda que essa indiferença das pessoas me incomode, é exatamente o motivo de eu ter me mudado para esta cidade há dez anos. Pessoas como eu pertencem às grandes cidades. Minha vida é irrelevante num lugar desse tamanho. Há muita gente com histórias muito mais tristes do que a minha. Aqui sou invisível. Desimportante. Manhattan tem gente demais para se preocupar comigo. E eu a amo por isso. — Está machucada? Olho para o homem que toca meu braço e observa minha blusa. Sua expressão é extremamente preocupada, e ele me olha da cabeça aos pés, procurando ferimentos. Pela reação, percebo que não é um desses nova-iorquinos sem coração. Pode até ser que more aqui agora, mas certamente vem de algum lugar que não lhe extraiu completamente a empatia. — Está machucada? — repete ele, me olhando nos olhos desta vez. — Não, não é meu sangue. Eu estava atrás dele quando... Paro de falar. Acabei de ver um homem morrer. Estava tão perto dele que seu sangue está em mim. Vim para esta cidade para ser invisível, mas certamente não sou insensível. Até venho tentando — a ideia é me tornar tão dura quanto o concreto onde piso. Mas ainda não deu muito certo. Consigo sentir tudo que acabei de testemunhar revirando no meu estômago. Cubro a boca com a mão, mas logo a tiro ao sentir algo grudento em meus lábios. Mais sangue. Olho para minha blusa. É muito sangue, e nada disso é meu. Seguro a blusa e tento puxá-la na altura do peito, mas ela gruda nos pontos em que o sangue começou a secar. Acho que preciso de água. Estou começando a me sentir meio tonta. Quero esfregar minha testa, coçar o nariz, mas tenho medo de tocar em mim mesma. Olho para o homem que ainda está segurando meu braço. — Tem sangue no meu rosto? Ele aperta os lábios e olha para o lado, checando os arredores. Aponta para uma cafeteria a poucos metros de distância. — Ali tem um banheiro — diz ele, com a mão nas minhas costas, enquanto me conduz até lá. Olho para o prédio da Pantem Press do outro lado da rua, para onde eu estava indo antes do acidente. Estava tão perto. A uns cinco ou seis metros de distância de uma reunião onde eu precisava desesperadamente estar. Fico me perguntando o quão perto o homem que acabou de morrer estava do destino dele. Assim que chegamos à cafeteria, o estranho segura a porta para eu entrar. Uma mulher carregando um café em cada mão tenta se espremer e passar por mim até que repara em minha blusa. Ela logo se afasta e abre caminho. Vou em direção ao banheiro feminino, mas a porta está trancada. O homem abre a porta do masculino e acena para que eu entre com ele. Ele vai direto até a pia e abre a torneira. Olho para o espelho, aliviada. Não é tão ruim quanto imaginei. Há alguns respingos de sangue nas minhas bochechas que já estão começando a escurecer e secar, além de uma mancha na sobrancelha. Mas, por sorte, foi a blusa que levou a pior. O homem me passa alguns papéis molhados e limpo meu rosto enquanto ele molha mais alguns. Agora consigo sentir o cheiro do sangue. Num turbilhão, aquele odor penetrante me leva de volta aos meus 10 anos de idade. O cheiro do sangue era tão forte que continua na minha memória depois de todos esses anos. Aquilo me causa náusea e tento prender a respiração. Não quero vomitar. Mas preciso me livrar desta blusa. Agora. Com os dedos trêmulos, abro os botões, tiro a blusa e a coloco embaixo da torneira. Deixo a água fazer todo o trabalho, pego mais papéis com o estranho e começo a limpar o sangue do meu peito. Em vez de dar um pouco de privacidade para mim (e para meu sutiã nada atraente), o estranho tranca a porta para que ninguém entre e me veja sem camisa. É um excesso de cavalheirismo que me deixa um pouco desconfortável. Fico tensa olhando para ele pelo reflexo do espelho. Alguém bate à porta. — Já vamos sair — avisa ele. Relaxo um pouco. Pelo menos há alguém do outro lado da porta para ouvir meus gritos, caso seja necessário. Tento me concentrar no sangue até tirar tudo do pescoço e do peito. Eu me viro para dar uma olhada no cabelo, mas não encontro nada além das raízes escuras nascendo por baixo do caramelo desbotado. — Toma — diz o homem, abrindo o último botão de sua camisa branca limpinha. — Vista isso. O paletó dele já havia sido tirado, e agora está pendurado na porta. Ele me entrega a camisa de botão. Está com uma camiseta branca por baixo. O cara é forte e mais alto do que eu. A camisa dele vai me engolir. Não posso usar isso numa reunião, mas não tenho opção. Seco minha pele, visto a camisa e começo a abotoá- la. Estou ridícula, mas pelo menos não foi a minha cabeça que explodiu na blusa de alguém. Sempre há um lado bom. Minha blusa não tem salvação. Eu a tiro da pia e a jogo no lixo. Então encaro meu reflexo no espelho. Dois olhos vazios e cansados me encaram de volta. Foram da cor de avelã ao castanho sombrio depois do horror que testemunharam. Esfrego as bochechas com as mãos para tentar lhes devolver alguma cor, mas nada feito. Minha cara é de morte. Encosto na parede, de costas para o espelho. O homem está guardando a gravata no bolso do paletó e olha para mim por um momento. — Não sei dizer se você está calma ou em estado de choque. Não estou em choque, mas também não acho que esteja calma. — Para ser sincera, nem eu tenho certeza — admito. — Você está bem? — Estou ótimo. Já vi coisas piores, infelizmente. Inclino a cabeça na tentativa de esmiuçar todas as camadas daquela resposta enigmática. Ele quebra o contato visual, mas isso só me faz encará-lo ainda mais, imaginando o que pode ser pior do que ver a cabeça de um homem ser esmagada embaixo de um caminhão. Talvez ele seja nova-iorquino, afinal de contas. Ou talvez trabalhe em um hospital. Ele tem um ar de eficiência que é bem comum em pessoas que são responsáveis por outras pessoas. — Você é médico? Ele faz que não com a cabeça. — Trabalho no mercado imobiliário. Ou trabalhava. Ele se aproxima e toca meu ombro, limpando algo da minha camisa. A camisa dele. Quando abaixa o braço, olha para o meu rosto por um momento antes de se afastar. Seus olhos combinam com a gravata que acabou de guardar no bolso. Chartreuse, um verde brilhante. Ele é lindo, mas algo me diz que não gostaria de ser. Quase como se sua beleza fosse um empecilho. Uma parte dele que não quer ser notada. Ele quer ser invisível nesta cidade. Igualzinho a mim. A maior parte das pessoas vem para Nova York para ser descoberta. O resto de nós vem pra se esconder. — Qual é o seu nome? — Lowen. Ele hesita quando digo meu nome, mas dura poucos segundos. — Jeremy — responde. Ele caminha até a pia, abre a água novamente e começa a lavar as mãos. Continuo a encará-lo, sem conseguir esconder minha curiosidade. Como assim, ele já viu algo pior do que o acidente que acabamos de testemunhar? Ele disse que atuava no mercado imobiliário, mas nem o pior dia de trabalho de um corretor deixaria alguém tão melancólico. — O que aconteceu com você? Ele olha para mim pelo espelho. — Como assim? — Você disse que já viu coisas piores. Tipo o quê? Ele fecha a torneira, seca as mãos e responde: — Quer mesmo saber? Assinto. Ele joga o papel na lixeira e depois enfia a mão no bolso. Seu comportamento fica ainda mais sombrio. Por fim, ele olha nos meus olhos, mas é como se estivesse se desligado desse momento. — Há alguns meses resgatei o corpo da minha filha de 8 anos de um lago. Inspiro o máximo de ar que me é possível e levo a mão à garganta. Sua expressão não era de melancolia. Era de desespero. — Sinto muito — sussurro. E sinto mesmo. Sinto muito pela filha. Sinto muito por ser curiosa. — E você? — pergunta Jeremy. Ele se inclina no balcão, como se aquela fosse uma conversa para a qual estivesse preparado. Uma conversa com alguém que faça suas tragédias parecerem menos trágicas. É o que se faz após experimentar uma coisa horrível. Buscar alguém como você... ou que esteja pior do que você... para tentar se sentir melhor. Engulo em seco antes de responder, porque minhas tragédias não são nada comparadas ao que ele passou. Penso na mais recente, com vergonha de dizer em voz alta. — Minha mãe morreu na semana passada. Jeremy não reage à minha tragédia como reagi à dele. Na verdade, ele não tem nenhuma reação. Talvez estivesse esperando que a minha tragédia fosse pior. Não é. Ele ganhou. — Como ela morreu? — Câncer. Vinha cuidando dela no meu apartamento durante o último ano — respondo. Ele é a primeira pessoa para quem conto isso em voz alta. Posso sentir os batimentos latejando em meu pulso, e o cubro com a outra mão. — Esta é a primeira vez que saio de casa em semanas. Ficamos nos encarando por mais um tempo. Quero dizer mais alguma coisa, mas nunca tive uma conversa tão pesada com um completo estranho. E, afinal de contas, para onde mais essa conversa pode avançar? Não avança. Simplesmente termina. Ele olha para si mesmo no espelho, colocando uma mecha solta de seu cabelo escuro no lugar. — Preciso ir para uma reunião. Tem certeza de que vai ficar bem? — pergunta Jeremy, olhando meu reflexo no espelho. — Sim, está tudo certo. — Tudo certo? — Ele se vira, repetindo a pergunta, como se “tudo certo” não significasse realmente que eu estou bem. — Vai ficar tudo certo. Obrigada pela ajuda. Queria que ele sorrisse, mas acho que não combina muito com o momento. Tenho curiosidade em saber como seria seu sorriso. Em vez disso, Jeremy encolhe os ombros e diz: “Então tudo certo.” Destranca a porta e a segura para mim, mas eu não saio logo. Em vez disso, continuo olhando para seu rosto, ainda relutante em enfrentar o mundo lá fora. Admiro sua gentileza e quero dizer algo, agradecê-lo de alguma forma. Talvez com um café, ou devolvendo sua camisa. Fico atraída por seu altruísmo, algo raro hoje em dia. Mas é o brilho de sua aliança na mão esquerda que acaba me empurrando para fora do banheiro e do café, para o meio da rua agora ainda mais cheia e barulhenta. Uma ambulância apareceu por ali e interrompeu o trânsito nos dois sentidos. Caminho de volta para o local do acidente, pensando se devo dar um depoimento. Espero ao lado de um policial que está anotando as versões de outras testemunhas. Não são diferentes da minha, mas, de qualquer forma, dou uma declaração e meus contatos. Não sei quanto posso efetivamente ajudar, já que não vi quando foi atingido. Estava perto o suficiente para ouvir. Perto o suficiente para que minha blusa ficasse parecendo um quadro do Pollock. Olho para trás e vejo Jeremy saindo com um copo de café fresquinho nas mãos. Ele atravessa a rua, concentrado em seu destino. Sua mente agora está pensando em outra coisa, nada que tenha a ver comigo, provavelmente em sua esposa e no que vai dizer a ela quando chegar em casa sem a camisa. Pego o celular para ver as horas. Ainda tenho quinze minutos antes da reunião com Corey e a editora da Pantem Press. Minhas mãos tremem ainda mais agora que não há um homem estranho me distraindo dos meus próprios pensamentos. Talvez um café ajude. Morfina definitivamente ajudaria, mas o serviço de cuidados paliativos levou tudo ao recolher os equipamentos após a morte da minha mãe. Pena que eu estava muito abalada para pensar em esconder. Seria bem útil agora.
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