Trinta e cinco anos depois de Feliz ano velho, a luta de uma família pela verdade Eunice Paiva é uma mulher de muitas vidas. Casada com o deputado Rubens Paiva, esteve ao seu lado quando foi cassado e exilado, em 1964. Mãe de cinco filhos, passou a criá-los sozinha quando, em 1971, o marido foi preso por agentes da ditadura, a seguir torturado e morto. Em meio à dor, ela se reinventou. Voltou a estudar, tornou-se advogada, defensora dos direitos indígenas. Nunca chorou na frente das câmeras. Ao falar de Eunice, e de sua última luta, desta vez contra o Alzheimer, Marcelo Rubens Paiva fala também da memória, da infância e do filho. E mergulha num momento negro da história recente brasileira para contar — e tentar entender — o que de fato ocorreu com Rubens Paiva, seu pai, naquele janeiro de 1971.
Ainda Estou Aqui – Marcelo Rubens Paiva
Parte 1
Onde é aqui?
Não nos lembramos das primeiras imagens e feitos da vida: do leite do
peito, das grades do berço, do móbile que se mexe sozinho magicamente, de
nos virar, não conseguir desvirar e chorar até alguém acudir, de como jogar as
perninhas pro lado, nos virar e desvirar sozinhos, o primeiro movimento que
revela um domínio corporal relevante da vida, do qual nos orgulhamos
imensamente, como nos erguer no berço, na cama dos pais, no chão, da
primeira vez que ficamos em pé, apoiados na parede, o segundo movimento
domínio corporal do qual nos orgulhamos imensamente, de jogar brinquedos
para fora do berço, de quem são papá e mamã, de apertar bonecos que dizem
“você é meu amigo”, “coraaaação”, “quem tá feliz bata palmas”, de que chorar é
recompensador, do fascinante interruptor que acende e apaga a luz, do mundo
dos vários botões ao redor, do mundo em que passam aviões no céu, e há
tomadas, o papel rasga, a impressora cospe papel, a gaveta abre e fecha, abre e
fecha, e há gavetas por todos os lados, de ligar a TV, de chamar o elevador, das
teclas do telefone e computador e controle remoto, do primeiro contato com o
magnífico celular, que toca música, e de uma queda livre sem apoio que com
tempo se transforma em caminhar e é aprimorada, um movimento que todo
mundo incentiva e adora e bate palmas pra ele.
Nos lembramos disso diariamente, ao sair do berço, de ir atrás do celular,
do controle, de tentar caminhar, de rasgar papel, de abrir e fechar gavetas, abrir
e fechar, do botão do boneco que nos chama de amigo, dos domínios corporais
que se aprimoram com o tempo, dos interruptores de luz, do que pode e
daquilo que “NÃO!”, não pode, dizem bravos, de quem é papá, mamã, vovó,
titia, de que, quando nos levam ao berço e apagam a luz, temos medo de tudo
isso sumir e nunca mais voltar: por isso choramos até cansar.
Já temos MEMÓRIA desde o primeiro dia em que nos deram à luz! Temos
lembranças assim que acordamos, lembramos que o mundo é magnífic
sentimos um vazio no estômago, uma fralda pesada, molhada, e lembramos
que, se chorarmos, milagrosamente aparece alguém que nos livra do
desconforto.
Somos um pi-to-qui-nho de gente pe-ti-ti-ti-ca e temos memória,
referências, jogamos com elas, calculamos nossas ações nos apoiando em
lembranças (já) solidificadas. No entanto, não nos lembraremos de nada dis
anos depois. Não nos lembramos de nada disso, mas nos lembramos do triciclo
que ganhamos aos três ou quatro anos, da pré-escola, de uma festa de
aniversário em que foram TODOS os amigos, de alguns brinquedos, babás, casas
em que moramos, corredores, quartos, castigos, brigas, escolas, tias-professoras,
coleguinhas.
As primeiras lembranças que guardamos para o resto da vida são as de
quando temos três ou quatro anos, e a cada ano que passa virão mais
lembranças que serão guardadas, cinco, seis, sete, que se tornam as primeiras
lembranças mais fortes do que o esquecimento, que serão cobertas por novas
experiências, que se acumulam, se acumulam, se acumulam, oito, nove, dez...
Meu filho não vai se lembrar de quando tinha um aninho e fazia quest
de mostrar o umbigo a todos que viessem falar com ele. Só sossegava se
também mostrássemos o nosso. Não vai se lembrar dos umbigos gordos,
peludos, lisos, engraçados, femininos, enormes, branquelos, tortos, achatados,
moles, tímidos, exuberantes, belíssimos que viu. Não vai se lembrar dos tios,
tias, amigos e amigas dos pais, desconhecidos e desconhecidas, que levantaram
a camisa para ele, fazendo uma cara engraçada, sorrindo um sorriso que ele
costumava checar se tinha a ver com o umbigo, pois olhava o umbigo alheio, o
rosto do seu dono e voltava ao umbigo. Nem vai se lembrar de que girava na
sala como uma barata tonta, caía, levantava e girava; só dias depois
descobrimos que estava jogando capoeira sozinho na sala, que aprendeu na
escolinha.
Mas saberá do seu fascínio infantil por esse buraco de nome engraçado no
meio do corpo que todos têm, depressão na pele resultado da queda do cordão
umbilical, a primeira cicatriz fisiológica que ganhamos. Saberá disso porq
contaremos, porque nas primeiras fotos das primeiras festas do primeiro ano do
grupo G1 da sua primeira escola, as crianças em torno de uma mesinha
aparecem sorrindo ou chorosas, olhando ou não para a câmera, e ele aparece de
camisa levantada apontando o seu umbigo fenomenal. E se perguntará se existe
uma fase em que a comunicação com o mundo se passa pelo umbigo, e se as
primeiras lembranças entram por ele.
O renascimento de um fato psicológico passado, seu reconhecimento e
localização são as condições necessárias das lembranças. Ou da memória.
Elimine um deles, não será lembrança, mas reminiscência. Você olha uma
pessoa na rua, pensa reconhecê-la, imagina que já a viu antes, mas não sabe
dizer quando nem onde. Há o retorno de um fato passado e o reconhecimento,
mas falta a localização: não há lembrança. Henri Bergson escreveu sobre isso.
Um teste clínico simples para detectar a falta de memória, como em pacientes
com Alzheimer, é perguntar onde e em que ano estamos.
30 de janeiro de 2008. Saímos da estação Liberdade. Fazia sol, mas me
lembro do cheiro de que ia chover. Talvez todo paulistano detecte com precisão
o cheiro da chuva a caminho. Sente no ar que o mundo pode desabar e tudo
vai mudar. Sabe que, se chove, segue-se o caos. E que, por mais que tentemos,
a natureza ainda é quem comanda a rotina do maior núcleo urbano da América
do Sul.
São Paulo é das raras cidades que têm postes com placas que indicam ÁREA
SUJEITA A ENCHENTES, letras em vermelho sobre um fundo azul com duas grandes
nuvens com gotas enormes, placa que não está no Código de Trânsito
Brasileiro. Como se adiantassem ao motorista que desce a rua Diana, em
Perdizes, onde está a placa, na esquina com a rua Turiassu — em algumas
placas, Turiaçu —, que no caso de tempestade a rua em frente se torna um rio
caudaloso, e que a enchente desce a rua com uma correnteza forte no mesmo
sentido dos carros, não na contramão, como se também obedecesse às placas de
trânsito, e que alaga todos os verões.
A memória é uma mágica não desvendada. Um truque da vida. Uma
memória não se acumula sobre outra, mas ao lado. A memória recente não é
resgatada antes da milésima. Elas se embaralham. Minha mãe, com Alzheimer,
não se lembra do que comeu no café da manhã. Minha mãe, com Alzheimer,
vê meu filho de um ano, que é a minha cara, e o reconhece. Não acha que s
eu, mas o chama de filhinho, de meu filhinho. E sempre
— É a coisa mais linda.
E às vezes se confunde e diz:
— Ela é a coisinha mais linda.
Pode ser ela, a criança. Pode ser que, por ter tido quatro filhas, todos
bebês se tornem ela. Minha mãe reclama muito quando o levamos embora.
Centro velho de São Paulo. Saímos da estação Liberdade. Minha mãe,
minha irmã Veroca e eu. Cruzamos o largo Sete de Setembro. Me lembro do
cheiro de que ia chover e do agito em torno do fórum. Ela já tinha feito aquele
caminho centenas de vezes. Mas, se a soltássemos ali, sozinha, naquela tarde
abafada, ela estancaria e não saberia o caminho de volta. Se perderia num
raciocínio circular, sob uma enchente de imagens, sinapses, comandos,
lembranças, que inundariam seu cérebro, fariam do conhecido, desconhecido,
resultariam numa só pergunta:
— O que estou fazendo aqui?
Ou melhor:
— O que é mesmo que vim fazer aqui?
E talvez:
— Onde é aqui?
Como não encontraria a resposta, já que a tempestade cerebral impediria a
clareza dos pensamentos, ela diria a frase que marcou a parte inicial do
Alzheimer:
— Quero ir embora.
Ou:
— Quero ir pra casa.
Às vezes sorridente. Às vezes furiosa. Sempre surpreendente.
Entramos no Fórum João Mendes. Ela olhava para o lugar com
familiaridade e sorria. Estava curtindo o passeio. Esperamos nas filas d
elevadores. Sobre eles, placas indicam os andares em que cada um para. Um
entra e sai numeroso de advogados, estagiários, réus, testemunhas, queixosos,
policiais, prisioneiros, assistentes, vítimas e casais se separando.
Turiaçu é um rio no Maranhão. A origem do nome vem de “tury” =
“facho” + “assu” = “grande”. Facho grande, grande luz, grande fogueira. Uma
fogueira num lugar elevado e vista de longe servia à pesca do camarão no mar.
Em noites escuras, mostrava aos que se demoravam, mais afastados da costa, o
ponto do regresso. Guiava os perdidos. Turyassu: a grande fogueira, o farol que
iluminava o caminho de volta para casa, para a aldeia, para as famílias.
Bateram no meu carro numa paralela à Turiaçu, num dia claro, e fui
processado naquele fórum. Minha mãe foi a minha advogada. O sujeito,
mesmo culpado, me pediu uma grana. Minha mãe aceitou a conciliação. O
cara pedia cinco vezes mais do que o conserto. Apresentou orçamentos falsos.
Fiquei decepcionado com ela, pois não lutou até o fim, não fez a justi
prevalecer; eu era inocente. Ele bateu no meu carro e agora tá dizendo que eu
bati!
— Meu filho, faz um acordo, não vale a pena ficar brigand
Não foi feita a justiça. Paguei o conserto do cara. Descemos no elevador
com o pilantra e o advogado oportunista dele. Descemos num respeitoso
silêncio. E cada parte foi pro seu lado sem se despedir. Eu deveria ter esganado
os dois, ele e o advogado. Fomos caminhando para a estação Liberdade. Ouvi
outras vezes, derrotado:
— Meu filho, faz um acordo, não vale a pena ficar brigand
Me separei naquele mesmo fórum, anos depois. Era para minha mãe ser a
minha advogada, como tinha sido a vida toda, advogada para tudo: batida de
carro, contratos, desentendimentos trabalhistas, problemas com a Receita. Foi
minha revisora e contadora, além de advogada de todos os cinco filhos e
uma dezena de primos, amigos e até de amigos de primos e pais de amigos.
Divorciou casais amigos, inventariou bens de famílias amigas, foi advogada de
fábrica, de empresas e de índios, foi advogada do divórcio do Ronnie Von, que
causava furor quando aparecia no escritório:
— Meu bem...
Uma das poucas especialistas em direito indígena, foi advogada da
fundação do Gilberto Gil, foi advogada no Brasil do Sting, que doava grana
para os caiapós, ele ligava para ela em casa, com um sotaque inglês
inconfundível:
— Eunice Paiva, porrr fa-vorrr.
— Mãe! Stingui de novo no telefone! Fala rápido, que estou esperando
uma ligação!