A obra teatral de Nelson Rodrigues exibe o olhar irônico e satírico deste dramaturgo genial sob re um país e uma sociedade em transformação vertiginosa. Nas 17 peças que escreveu ao longo de sua carreira, ele inaugurou e consolidou o modernismo no teatro brasileiro. Dorotéia, ex-prostituta que largou a professou depois da morte do filho, vai morar na casa de suas primas, três viúvas puritanas e feias que não conseguem exergar os homens e não dormem para não sonhar. Ao contrário das mulheres da família, Dorotéia é bonita, exuberante e não tem aversão aos homens. Mas, em troca de abrigo, aceita se tornar tão feia e puritana como as primas. Dorotéia, que estreou em 1950, é uma das peças míticas de Nelson. Nela os homens estão ausentes: eles só aparecem na fala das personagens femininas.
Dorotéia – Nelson Rodrigues
© Espólio de Nelson Falcão Rodrigues
Direitos de edição da obra em língua portuguesa no Brasil adquiridos pela Editora Nova Fronteira Participações S.A. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e estocada em sistema de banco de dados ou processo similar, em qualquer forma ou meio, seja eletrônico, de fotocópia, gravação etc., sem a permissão do detentor do copirraite.
Editora Nova Fronteira Participações S.A.
Rua Nova Jerusalém, 345 – Bonsucesso – 21042-235
Rio de Janeiro – RJ – Brasil
Tel.: (21) 3882-8200 – Fax: (21) 3882-8212/8313
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
R614d
2.ed.
Rodrigues, Nelson, 1912-1980
Doroteia : farsa irresponsável em três atos : peça mítica / Nelson Rodrigues ; [notas e roteiro de leitura de Flávio Aguiar]. – 2.ed. – Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 2012. .
ISBN 978-85-209-3438-8
1. Teatro brasileiro. I. Título.
CDD: 869.92
CDU: 821.134.3(81)-2
Programa de estreia de Doroteia, apresentada no Teatro Fênix, Rio de Janeiro, em 7 de março de 1950..
Paschoal Bruno
apresenta
Doroteia
Farsa em três atos
de Nelson Rodrigues
Distribuição por ordem de aparecimento:
flávia
Luiza Barreto Leite
maura
Nieta Junqueira
carmelita
Rosita Gay
das dores
Dulce Falcão Rodrigues
doroteia
Eleonor Bruno
d. assunta da abadia
Maria Fernanda
Encenação, direção e iluminação de Ziembinski
Cenários e figurinos de Santa Rosa
PERSONAGENS
d. flávia
doroteia
carmelita
maura
d. assunta da abadia
das dores
PRIMEIRO ATO
(Casa das três viúvas — d. Flávia, Carmelita e Maura. Todas de luto, num vestido longo e castíssimo, que esconde qualquer curva feminina. De rosto erguido, hieráticas, conservam-se em obstinada vigília, através dos anos. Cada uma das três jamais dormiu, para jamais sonhar. Sabem que, no sonho, rompem volúpias secretas e abomináveis. Ao fundo, também de pé, a adolescente Maria das Dores, a quem chamam, por costume, de abreviação, Das Dores. D. Flávia, Carmelita e Maura são primas. Batem na porta. Sobressalto das viúvas. D. Flávia vai atender; as três mulheres e Das Dores usam máscaras.)
d. flávia
— Quem é?
doroteia
—Parente.
d. flávia
— Mas parente tem nome!
doroteia
— Doroteia!
(Cochicham Maura e Carmelita.)
carmelita
— Doroteia não é uma que morreu?
maura
(num sopro) — Morreu...
carmelita
— E afogada, não foi?
maura
— Afogada. (lenta, espantada) Matou-se...
doroteia
(em pânico) — Abram! Pelo amor de Deus, abram!
d. flávia
(rápida) — Teve a náusea?
doroteia
— Não ouvi...
d. flávia
(calcando bem as sílabas) — Teve a náusea?
(Silêncio de Doroteia.)
maura
(para Carmelita) — Não responde!
carmelita
— Ih!
d. flávia
— Se é da família...
doroteia
(sôfrega) — Sou!...
d. flávia
— ...deve saber, tem que saber!
doroteia
— Tive sim, tive!
(Rápida, d. Flávia escancara a porta. Maura e Carmelita abrem, a título de vergonha, um leque de papel multicor. Doroteia entra, com expressão de medo. É a única das mulheres em cena que não usa máscara. Rosto belo e nu. Veste-se de vermelho, como as profissionais do amor, no princípio do século.)
doroteia
(ofegante) — Oh! Graças, graças!
maura
(com o rosto protegido pelo leque) — Será mesmo Doroteia?
carmelita
(protegida pelo leque) — Que o quê!
maura
— Claro... Doroteia morreu...
d. flávia
(para Doroteia) — Mentirosa! Sua mentirosa! Não é Doroteia!
doroteia
— Sou!
d. flávia
— Doroteia morreu!
doroteia
(em pânico) — Não! Juro que não!
maura
(a Carmelita) — Vamos espiar!
(As duas sobem numa cadeira, estiram o pescoço e olham por cima do leque. Agora d. Flávia e as primas, unidas em grupo, recuam para a outra extremidade do palco, como se a recém-chegada fosse um fantasma hediondo; agacham-se, sob a proteção dos leques. E segredam, de rosto voltado para a plateia.)
maura
— Não é, não!
carmelita
— Nunca foi!
(Doroteia aproxima-se do grupo. Fica de pé, de frente para a plateia.)
d. flávia