Cidade de Vidro – Paul Auster

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Ao telefone, uma voz suplica por ajuda, arrastando Daniel Quinn a um mundo de mistérios e estranhezas. Suas desventuras estão em Cidade de Vidro, o conto que abre o livro Trilogia de Nova Iorque de Paul Auster, o consagrado autor de Da mão para a boca e roteirista dos filmes Cortina de fumaça e Sem fôlego. Nas mãos de David Mazzucchelli e Paul Karasik, o premiado conto ganha novos e surpreendentes contornos.

Foi um número errado que começou tudo, o telefone tocando três vezes, altas horas da noite, e a voz do outro lado chamando alguém que não morava ali. Bem mais tarde, quando ele já se sentia capaz de refletir sobre as coisas que lhe aconteceram, chegaria à conclusão de que nada era real a não ser o acaso. Mas isso foi muito depois. No início, havia apenas o fato e suas conseqüências. Se aquilo poderia ter um desfecho diferente ou se tudo já estava predeterminado desde a primeira palavra que saiu da boca do desconhecido não é o que está em questão. A questão é a história em si, e não cabe à história dizer se ela significa ou não alguma coisa. Quanto a Quinn, há pouca coisa para comentar. Quem era, de onde veio e o que fazia não têm muita importância. Sabemos, por exemplo, que tinha trinta e cinco anos de idade. Sabemos que já fora casado, havia sido pai e que sua esposa e seu filho haviam morrido. Sabemos também que era autor de livros. Para ser preciso, sabemos que escrevia romances de mistério. Três obras foram escritas com o nome de William Wilson e ele as concluía à razão de uma por ano, o que lhe rendia dinheiro bastante para viver modestamente em um pequeno apartamento de Nova York. Como não gastava mais do que cinco ou seis meses para escrever um romance, ficava livre o resto do ano para fazer o que bem entendesse. Lia muitos livros, ia a exposições de pintura, ia ao cinema. No verão, assistia aos jogos de beisebol na tevê; no inverno, ia à ópera. Mais do que tudo, porém, gostava de caminhar. Quase todo dia, com sol ou chuva, frio ou calor, saía do seu apartamento para andar pela cidade — nunca para ir a algum lugar determinado, mas simplesmente deixando-se levar por suas pernas. Nova York era um espaço inesgotável, um labirinto de caminhos intermináveis, e por mais longe que ele andasse, por melhor que conhecesse seus bairros e ruas, a cidade sempre o deixava com a sensação de estar perdido. Perdido não apenas na cidade, mas também dentro de si mesmo. Toda vez que saía para dar uma volta, tinha a sensação de que estava deixando a si mesmo para trás e, ao se entregar ao movimento das ruas, ao reduzir-se a um olhar observador, ele se descobria apto a fugir da obrigação de pensar, e isso, mais do que qualquer outra coisa, lhe trazia uma certa paz, um saudável vazio interior. O mundo estava fora dele, em volta, à frente, e a velocidade com que o mundo se modificava sem parar tornava impossível para Quinn deter-se em qualquer coisa por muito tempo. O movimento era a chave da questão, o ato de colocar um pé adiante do outro e se abandonar ao fluxo do próprio corpo. Ao caminhar sem rumo, todos os lugares se tornavam iguais e já não importava mais onde estava. Em suas melhores caminhadas, chegava a sentir que não estava em parte alguma. E isso, afinal, era tudo o que sempre pedia das coisas: não estar em lugar nenhum. Nova York era o lugar nenhum que ele havia construído em torno de si mesmo, e Quinn se deu conta de que não tinha a menor intenção de um dia deixá-la outra vez. No passado, Quinn fora mais ambicioso. Quando jovem, publicara vários livros de poesia, escrevera peças teatrais, ensaios de crítica e trabalhara em algumas traduções extensas. Porém, de maneira um tanto repentina, desistira de tudo isso. Uma parte dele havia morrido, explicava aos amigos, e não queria que ela voltasse para assombrar sua vida. Foi nessa altura que adotou o nome de William Wilson. Quinn já não era mais aquela parte dele capaz de escrever livros e, embora de várias maneiras Quinn continuasse a existir, já não existia mais para ninguém senão para si mesmo. Continuou a escrever porque era a única coisa que se sentia capaz de fazer. Os romances de mistério pareciam uma solução razoável. Tinha pouco trabalho para inventar as histórias complicadas que o gênero exigia, e escrevia bem, muitas vezes a despeito da própria vontade, como se não tivesse de fazer nenhum esforço. Visto que não se considerava o autor daquilo que escrevia, ele mesmo não
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