Drácula e Batman discutem no asilo. Robespierre tenta subornar o carrasco. Goya e Picasso conversam sob o sol da Côte d’Azur. Juvenal planeja matar a mulher, Marinei, que o despreza. A recém-casada Heleninha pede conselhos ao urso de pelúcia. Qual um existencialista dotado de senso de humor, Verissimo persegue em suas crônicas o absurdo que marca a existência humana – salvo engano, a única que se preocupa com o seu propósito, o seu término e se alguém está falando demais na hora do pôquer. Em nenhum momento essa maldição se torna mais evidente do que na hora em que o homem abre a boca. Então, o que era para comunicar acaba é “estrumbicando”. Tais constatações podem ser verificadas em seu novo livro, Diálogos impossíveis, seja no diálogo imaginário de Don Juan tentando seduzir a própria Morte ou na conversa cotidiana de um casal que se desentende na hora de dormir. Tanto faz. O homem – e, sejamos igualitários, a mulher – parece falar o que não deve e calar no fundamental. Para sorte do leitor, Verissimo está sempre por perto, registrando os hilariantes momentos em que o ser humano exerce sua vocação para a confusão: – Não somos muito diferentes – diz Drácula. – Somos completamente diferentes! – rebate Batman. – Eu sou o Bem, você é o Mal. Eu salvava as pessoas, você chupava o seu sangue e as transformava em vampiros como você. Somos opostos. – E no entanto – volta Drácula com um sorriso, mostrando os caninos de fantasia – somos, os dois, homens-morcegos… Batman come o resto do seu iogurte sob o olhar cobiçoso do conde. – A diferença é que eu escolhi o morcego como modelo. Foi uma decisão artística, estética, autônoma. – E estranha – diz Drácula. – Por que morcego? Eu tenho a desculpa de que não foi uma escolha, foi uma danação genética. Mas você? Nas crônicas reunidas neste volume, Luis Fernando Verissimo escreve sobre impossibilidade, incomunicabilidade e mal-entendidos. Escreve, enfim, sobre a vida.
Folha de Rosto
O conselheiro
João riu muito quando a Heleninha contou que tinha um ursinho de estimação, sem o qual não saberia viver, e que ele se chamava Tedi.
— Vá se acostumando — disse a futura sogra ao João, dias antes do casamento, depois de a Heleninha revelar que levaria o Tedi na lua de mel. — Ela não larga esse ursinho. Desde menininha.
E a Heleninha levou o ursinho de estimação na lua de mel. E colocou o ursinho na cama do casal, depois que voltaram da lua de mel e se instalaram no apartamento novo. E João não se cansava de olhar a nova mulher dormindo abraçada ao seu ursinho. Bonito aquilo. Heleninha, no fundo, ainda era uma criança. O ursinho era a segurança de Heleninha. Era o seu apego à infância e às suas doces ingenuidades. E seu confidente. E seu conselheiro.
— Ah é? — sorriu João. — Você conta todos os seus segredos para o Tedi?
— Conto.
— E ele lhe dá conselhos?
— Dá.
— Um dia vou ter que ter uma conversa com esse ursinho...
— Ele não fala com qualquer um — disse Heleninha. Séria.
João deu uma boa risada. Mas Heleninha continuou séria. Estava sentida. O marido estava fazendo pouco dela. Estava tratando-a como a uma criança. No dia seguinte, Heleninha pediu para João ir dormir na sala.
— Por quê?
— O Tedi acha que será melhor para o nosso casamento.
A sogra recomendou ao João que tivesse paciência. Na verdade, durante toda a infância e a adolescência de Heleninha os conselhos que ela atribuía ao Tedi tinham se revelado muito sensatos. A própria escolha do João como marido fora do Tedi, segundo Heleninha. João entendia do mercado de capitais. Ficaria rico, comprando e vendendo na hora certa. Daria uma boa vida a Heleninha, na opinião do Tedi. Estava passando por dificuldades, no momento, mas quem não estava, no seu ramo? Era só recomeçar a fazer as escolhas certas e voltaria a ter sucesso no mercado de capitais. Segundo o Tedi.
João resistiu à conclusão de que toda a família era louca e decidiu que o jeito era conquistar a boa vontade do Tedi. Mas como? Nem todo o amor que sentia por Heleninha o faria puxar conversa com um ursinho de estimação. Que, além de tudo, não falava com qualquer um. O que fazer? Resolveu pedir a Heleninha que lhe transmitisse as instruções do Tedi sobre quando e o que comprar e quando e o que vender. E, seguindo os conselhos do Tedi, João voltou a ganhar dinheiro.
João não comenta com ninguém do ramo o segredo do seu sucesso. Nem acredita que são os conselhos do Tedi os responsáveis pela sua recuperação. É tudo coincidência, claro. Mas o mercado está de um jeito, raciocina, que se deve aceitar ajuda de onde vier. E pelo menos o Tedi o deixou voltar para a cama da Heleninha.
O enganado
Alguma coisa ia lhe acontecer. Trinta e sete anos, saúde perfeita, ganhando dinheiro como nunca — alguma coisa estava errada. O mundo todo em crise e ele ali, sem um problema. Ou com um problema só: a ausência de problemas.
Alguma estavam lhe preparando. Ia ter um enfarte fulminante. Perder o emprego. Perder uma perna. Estava tudo bem demais. Ele era o único homem da sua idade com os quatro avós ainda vivos! Aquilo não era natural. Alguma estavam lhe preparando. E não demoraria.
Alguém sentou ao seu lado no bar e disse:
— Você não me conhece.
Era um homem bonito, mais moço do que ele. O homem estendeu a mão e se apresentou.
— Eu sou o Carlos.
— Muito prazer...
— Sua mulher deve ter lhe falado a meu respeito.
— Não, não falou.
O homem fez uma cara de desapontamento. Disse:
— Ela me prometeu que lhe contaria tudo. Assim fica mais difícil...
Ele sentiu, com alívio, que sua tragédia chegava. Então era isso. Sua mulher o enganava. Era melhor do que um enfarte.
— Quem sabe você mesmo me conta tudo, Carlos?
— Bom, não há muito para contar. Nos conhecemos...
— Onde?
Estava tomado por uma espécie de volúpia de sofrimento. Queria saber tudo. Queria ser arrasado pelos detalhes.
— Num shopping.
Ele gemeu baixinho. Perfeito. Nas suas intermináveis tardes fazendo