Auto da Barca do Inferno – Gil Vicente

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O “Auto da Barca do Inferno”, de Gil Vicente, é uma sátira impiedosa da sociedade portuguesa do século XVI. Suas críticas não poupam ninguém – fidalgos, padres magistrados, mas também sapateiros e ladrões.
Cada personagem traz, nas roupas ou nas mãos, os símbolos de seus pecados e deles não podem se desfazer; não há defesa contra as acusações do Diabo ou do Anjo.

Auto da Barca do Inferno – Gil Vicente

  Fonte: VICENTE, Gil. Auto da Barca do Inferno. [Lisboa]: [s.n.], [1517] data certa da primeira encenação.   Proveniência: Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro, da Universidade de São Paulo:   Texto encenado pela primeira vez em 1517.     Editoração eletrônica: Brasil ePub . Este arquivo pode ser livremente distribuído, desde que citada a fonte da editoração eletrônica.   Gil Vicente nasceu provavelmente em Guimarães, Portugal, em 1465, e faleceu, provavelmente, em 1536.   Esta obra encontra-se, no Brasil, em domínio público, conforme art. 41 da Lei federal n. 9.610, de 19 de fevereiro de 1998. Sumário   Auto da Barca do Inferno   Auto da Barca do Inferno    Auto de moralidade composto por Gil Vicente, por contemplação da sereníssima e muito católica rainha Lianor, nossa senhora, e representado por seu mandado ao poderoso príncipe e mui alto rei Manuel, primeiro de Portugal deste nome.   Começa a declaração e argumento da obra. Primeiramente, no presente auto, se fegura que, no ponto que acabamos de espirar, chegamos supitamente a um rio, o qual per força havemos de passar em um de dous batéis que naquele porto estão, scilicet, um deles passa pera o paraíso e o outro pera o inferno: os quais batéis tem cada um seu arrais na proa: o do paraíso um Anjo, e o do inferno um arrais infernal e um companheiro.   O primeiro intrelocutor é um fidalgo que chega com um Paje, que lhe leva um rabo mui comprido e üa cadeira de espaldas. E começa o Arrais do Inferno ante que o fidalgo venha.   DIABO: À barca, à barca, houlá! que temos gentil maré! - Ora venha o carro a ré! COMPANHEIRO: Feito, feito! Bem está! Vai tu muitieramá, e atesa aquele palanco e despeja aquele banco, pera a gente que virá. À barca, à barca, hu-u! Asinha, que se quer ir! Oh, que tempo de partir, louvores a Berzebu! - Ora, sus! que fazes tu? Despeja todo esse leito! COMPANHEIRO: Em boa hora! Feito, feito! DIABO: Abaixa aramá esse cu! Faze aquela poja lesta e alija aquela driça. COMPANHEIRO: Oh-oh, caça! Oh-oh, iça, iça! DIABO: Oh, que caravela esta! Põe bandeiras, que é festa. Verga alta! Âncora a pique! - Ó poderoso dom Anrique, cá vindes vós?... Que cousa é esta?...   Vem o fidalgo e, chegando ao batel infernal, diz:   FIDALGO: Esta barca onde vai ora, que assi está apercebida? DIABO: Vai pera a ilha perdida, e há-de partir logo ess'ora. FIDALGO: Pera lá vai a senhora? DIABO: Senhor, a vosso serviço. FIDALGO: Parece-me isso cortiço... DIABO: Porque a vedes lá de fora. FIDALGO: Porém, a que terra passais? DIABO: Pera o inferno, senhor. FIDALGO: Terra é bem sem-sabor. DIABO: Quê?... E também cá zombais? FIDALGO: E passageiros achais pera tal habitação? DIABO: Vejo-vos eu em feição pera ir ao nosso cais... FIDALGO: Parece-te a ti assi!... DIABO: Em que esperas ter guarida? FIDALGO: Que leixo na outra vida quem reze sempre por mi. DIABO: Quem reze sempre por ti?!.. Hi, hi, hi, hi, hi, hi, hi!... E tu viveste a teu prazer, cuidando cá guarecer por que rezam lá por ti?!... Embarca - ou embarcai... que haveis de ir à derradeira! Mandai meter a cadeira, que assi passou vosso pai. FIDALGO: Quê? Quê? Quê? Assi lhe vai?! DIABO: Vai ou vem! Embarcai prestes! Segundo lá escolhestes, assi cá vos contentai. Pois que já a morte passastes, haveis de passar o rio. FIDALGO: Não há aqui outro navio? DIABO: Não, senhor, que este fretastes, e primeiro que expirastes me destes logo sinal. FIDALGO: Que sinal foi esse tal? DIABO: Do que vós vos contentastes. FIDALGO: A estoutra barca me vou. Hou da barca! Para onde is? Ah, barqueiros! Não me ouvis? Respondei-me! Houlá! Hou!... (Pardeus, aviado estou! Cant'a isto é já pior...) Oue jericocins, salvanor! Cuidam cá que são eu grou? ANJO: Que quereis? FIDALGO: Que me digais, pois parti tão sem aviso, se a barca do Paraíso é esta em que navegais. ANJO: Esta é; que demandais? FIDALGO: Que me leixeis embarcar. Sou fidalgo de solar, é bem que me recolhais. ANJO: Não
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