Passamos a vida tentando aprender a ganhar. Buscamos cursos, livros, milhares de técnicas sobre como conquistar bens, pessoas, benefícios, vantagens. Sobre a arte de ganhar existem muitas lições, mas e sobre a arte de perder? Ninguém quer falar a respeito disso, mas a verdade é que passamos muito tempo da nossa vida em grande sofrimento quando perdemos bens, pessoas, realidades, sonhos. Vivemos buscando discursos que nos mostrem como ganhar. Como conquistar o amor da nossa vida, o trabalho da nossa vida. […] No entanto, saber perder é a arte de quem conseguiu viver plenamente o que ganhou um dia.
Para boa parte de nós, a morte é provavelmente o maior de todos os medos. Mas e se a grande questão envolvendo a morte for, na verdade, a vida? Estamos aproveitando nossos dias ou vamos chegar ao fim desta jornada cheios de arrependimentos sobre
coisas que fizemos – ou, pior, que deixamos de fazer? De maneira clara e suave, Ana Claudia nos ajuda a ter um novo olhar sobre o modo como gastamos o nosso tempo e sobre a nossa ideia acerca da vida e da morte.
Dedico a sabedoria deste livro aos
meus maiores mestres: as pessoas
que cuidei e os seus familiares.
Prefácio
Proponho-vos um desafio: que olhemos para este livro como um
companheiro de uma bela viagem, como um livro de uma exploradora sábia
e corajosa, que decidiu escrever um contributo para dar a conhecer a outros
um território ainda tão desconhecido e sobre um tema ainda tabu na
sociedade actual.
Falamos de um contributo contra o preconceito em geral, que vai para
além dos nossos medos. Falamos de desbravar o território do fim de vida,
de tornar mais próximo, mais claro, menos ameaçador, o que está por trás de
uma realidade que muitos persistem em negar, em ocultar: a nossa finitude e
vulnerabilidade. E negar o inevitável, viver como se a morte não existisse,
não nos tem feito mais felizes.
É por isso que a viagem que este livro propõe é uma viagem de lucidez, de
sabedoria, uma viagem de mil passos, de passos que devemos assumir se
queremos efectivamente viver melhor. É uma viagem contra o preconceito,
feita sem medos. Partimos da realidade do fim de vida e da morte para,
como se diz no subtítulo, «procurar um novo olhar para a vida». É pois, um
livro para ajudar a viver melhor. Esse desígnio, por si só, faz com que este
livro seja um passo conseguido e um ganho efectivo para quem o lê. Mas
este livro vale a pena por muito mais que isso.
A complexidade do tema poderia fazer pensar que a forma de o abordar
tornaria a sua leitura pesada ou até enfadonha. Mas não. A escrita de Ana
Cláudia revela alguém que trata o tema com conhecimento, alguém que
pretende ser empenhadamente esclarecedor, sem recurso a superficialidades.
Fá-lo com proximidade e com rigor – vejam-se inúmeras referências a casos
reais e a enquadramento teórico adequado –, trata a temática com
profundidade, sem que isso represente optar por um estilo mais denso. Na
escrita deste livro ressaltam a atenção aos detalhes, uma enorme delicadeza
na escolha das palavras e no modo como se descrevem as várias questões
em torno do fim de vida. Esta é não só uma escrita corajosa como também
surpreendente, sensível e cheia de beleza.
Estamos gratos à Ana Cláudia por este seu contributo generoso, esperando
que, com tanto talento e conhecimento, outros se lhe possam seguir.
Estamos perante um livro de múltiplos talentos, um livro de leitura
obrigatória. Por tudo isto, é um livro que vale bem a pena ser lido mas,
sobretudo, levar para a vida.
Lisboa, novembro 2018
Isabel Galriça Neto
INTRODUÇÃO
«Se você expressar o que habita em você, isso irá salvá-lo.
Mas se você não expressar o que habita em você,
isso irá destruí-lo.»
Jesus – Evangelho de São Tomé
Um convite, uma festa. Chego sem conhecer ninguém além da anfitriã. Pela
recepção calorosa dela, percebo que alguns convidados estão interessados
em saber quem sou.
Aproximam-se. Fico um pouco tímida nestas ocasiões e tenho dificuldade
em começar a conversar. Mais uns instantes e a roda amplia-se; a conversa
flui. Cada um diz quem é e o que faz da vida. Observo gestos e olhares. Um
instinto misteriosamente provocador brota em mim. Sorrio. Finalmente
alguém pergunta:
– E tu? Trabalhas com a Fernanda?
– Sou médica.
– A sério? Que máximo! Qual é a tua especialidade?
Segundos de dúvida. O que vou responder? Posso dizer que sou geriatra, e
a conversa vai enveredar para o rumo mais óbvio. Três ou quatro dúvidas
sobre problemas de cabelo e unhas. O que eu, com a minha experiência,
recomendo para retardar o envelhecimento? Talvez alguma pergunta sobre
um familiar que parece dar sinais de demência.
Desta vez, porém, quero responder algo diferente.
Quero dizer o que faço; dizer ainda que o faço com muito prazer, e que me
realiza muito. Não quero fugir. Essa decisão interna traz-me uma inquietude
e, ao mesmo tempo, uma sensação agradável de libertação.
– Eu cuido de pessoas que morrem.
Segue-se um profundo silêncio. Falar de morte numa festa é algo
impensável. O ambiente fica tenso, e mesmo à distância percebo olhares e
pensamentos. Escuto a respiração das pessoas que me cercam. Algumas
desviam o olhar para o chão, à procura o buraco onde gostariam de se
esconder. Outras continuam a olhar-me com aquela expressão de «Hã?», à
espera que eu rapidamente possa corrigir a frase e explicar que não me
expressei bem.
Já há algum tempo que eu tinha vontade de fazer isso, mas faltava-me
coragem para enfrentar o abominável silêncio que, já imaginava, precederia
qualquer comentário.
Ainda assim, não me arrependi. Internamente, eu consolava-me e
perguntava a mim mesma: «Algum dia as pessoas escolherão falar da vida
por esse caminho. Será que vai ser hoje?»
Então, durante um silêncio constrangedor, alguém ganha coragem, esconde-
se atrás de uma bolha sorridente e consegue fazer um comentário:
– Caramba! Deve ser bem difícil!
Sorrisos forçados, novo silêncio. Em dois minutos, o grupo dispersou-se.
Um afastou-se para conversar com um amigo recém-chegado, outro foi
buscar uma bebida e nunca mais voltou. Uma terceira pessoa saiu para ir à
casa de banho, outra pediu licença simplesmente e foi-se embora. Deve ter
sido um alívio quando me despedi e fui embora antes de completar duas
horas de festa. Eu também senti alívio e, ao mesmo tempo, pesar. Será que
algum dia as pessoas serão capazes de desenvolver uma conversa simples e
transformadora sobre a morte?
Mais de quinze anos se passaram desde esse dia em que saí do armário.
Assumi a minha versão «cuido de pessoas que morrem» e, à revelia de quase
todos os prognósticos da época, a conversa sobre a morte ganha cada vez
mais espaço na vida. A prova disso? Estou a escrever este livro, e há quem
acredite que muita gente o vai ler.
QUEM SOU EU
«Eu tive uma namorada que via errado.
O que ela via não era uma garça na beira do rio.
O que ela via era um rio na beira de uma garça.
Ela despraticava as normas. Dizia que seu avesso
era mais visível do que um poste.
Com ela as coisas tinham
que mudar de comportamento.
Aliás, a moça me contou uma vez que tinha
encontros diários com as suas contradições.»
Manoel de Barros