“A Casa dos Espíritos”, de Isabel Allende, é uma obra que combina elementos de realismo mágico e história, retratando a saga de três gerações da família Trueba em um país fictício com semelhanças evidentes ao Chile. A narrativa começa com Clara del Valle, uma menina que tem a habilidade de se comunicar com espíritos e prever o futuro. Clara se casa com Esteban Trueba, um homem rico e volátil, e juntos eles têm uma filha chamada Blanca.
Blanca se apaixona pelo filho do capataz da fazenda, Pedro Tercero García, o que causa grande conflito com Esteban. Apesar dos obstáculos, Blanca e Pedro se casam e têm uma filha chamada Alba, que se torna a terceira geração da família Trueba retratada no livro. Alba cresce durante um período de grande turbulência política no país fictício, enfrentando repressão e resistência.
O romance aborda temas como amor, família, morte, classes sociais, revolução, política e o sobrenatural, através da perspectiva dos personagens principais. Além disso, a obra explora questões de feminismo e colonização, apresentando uma crítica à ditadura e ao autoritarismo.
Isabel Allende, nascida em 1942 no Peru, passou a infância no Chile e exilou-se na Venezuela após o golpe militar de 1973 no Chile. “A Casa dos Espíritos” é seu primeiro romance, lançado em 1982, e se tornou um dos títulos mais importantes da literatura latino-americana.
Capítulo I
Rosa, a Bela
«Barrabás chegou à família por via marítima», anotou a menina
Clara com a sua delicada caligrafia. Já nessa altura tinha o hábito de
escrever as coisas importantes e, mais tarde, quando ficou muda,
escrevia também as trivialidades, sem suspeitar que cinquenta anos
depois os seus cadernos me iriam servir para resgatar a memória do
passado e sobreviver ao meu próprio espanto. O dia em que chegou
Barrabás era Quinta-Feira Santa.
Vinha numa jaula indigna, coberto dos próprios excrementos e de
urina, com um olhar extraviado de preso miserável e indefeso,
adivinhando-se, porém, pelo porte real da cabeça e pelo tamanho do
esqueleto o gigante lendário que veio a ser. Era um dia aborrecido e
outonal, que em nada fazia imaginar os acontecimentos que a
menina registou para serem recordados e que ocorreram durante a
missa das doze, na paróquia de San Sebastián, à qual assistiu com
toda a família. Em sinal de luto, os santos estavam tapados com
panos roxos que as beatas sacudiam anualmente do arcaz da
sacristia e, por baixo dos lençóis de luto, a corte celestial parecia um
amontoado de móveis esperando mudança, sem que as velas, o
incenso ou os gemidos do órgão pudessem contrastar com esse
lamentável efeito. Erguiam-se vultos ameaçadores no lugar dos
santos de corpo inteiro, com rostos idênticos, de expressão enjoada,
com complicadas cabeleiras de cabelo de morto, rubis, pérolas,
esmeraldas de vidro pintado e vestuário de nobres florentinos. O
único favorecido com o loto era o padroeiro da igreja, São Sebastião,
porque, na Semana Santa, reservava para os fiéis o espectáculo do
seu corpo torcido numa posição indecente, atravessado por meia
dúzia de flechas, escorrendo sangue e lágrimas, como um
homossexual sofredor, cujas chagas, milagrosamente frescas graças
ao pincel do padre Restrepo, faziam Clara estremecer de nojo.
Era uma longa semana de penitência e jejum, não se jogava às
cartas, não se tocava música que incitasse à luxúria e ao
esquecimento, observava-se, na medida do possível, a maior tristeza
e castidade, apesar de, justamente nesses dias, o aguilhão do
demónio tentar com maior insistência a débil carne católica. O jejum
consistia em tenros pastéis de massa folhada, saborosos guisados de
legumes, fofas tortilhas e grandes queijos trazidos do campo, com
que as famílias recordavam a Paixão do Senhor, tendo o cuidado de
não provar o mais pequeno pedaço de carne ou de peixe, sob pena
de excomunhão, como dizia, insistindo, o padre Restrepo. Ninguém
se atreveria a desobedecer-lhe. O sacerdote estava munido de um
grande dedo incriminador para apontar os pecadores em público e
uma língua treinada para agitar os sentimentos.
- Tu, ladrão, que roubaste o dinheiro do culto! - gritava do púlpito
apontando um cavalheiro que fingia preocupar-se com qualquer
sujidade na lapela do casaco para esconder a cara. - Tu,
desavergonhada, que te prostituis nos molhes! - e acusava Dona
Ester Trueba, inválida pela artrite e beata da Senhora do Carmo, e
que abria os olhos surpreendida, sem saber o significado daquela
palavra nem onde ficavam os molhes. - Arrependei-vos, pecadores,
carcaças imundas, indignos do sacrifício de Nosso Senhor! Jejuai!
Fazei penitência!
Levado pelo entusiasmo do seu zelo vocacional, o sacerdote tinha
de conter-se para não desobedecer declaradamente às instruções
dos superiores eclesiásticos, sacudidos por ventos de modernismo, e
que se opunham ao cilicio e à flagelação. Era partidário de vencer as
fraquezas da alma com uma boa chicotada na carne. Era famoso
pela sua oratória de enfreada. Os fiéis seguiam-no de paróquia em
paróquia, suavam ouvindo-o descrever os tormentos dos pecadores
no inferno, as carnes estraçalhadas por engenhosas máquinas de
tortura, os fogos eternos, os garfos que trespassavam os membros
viris, os répteis asquerosos que se introduziam pelos orifícios
femininos e outros suplícios que introduzia em cada sermão para
espalhar o terror de Deus. O próprio Satanás era descrito até às
suas mais intimas anomalias com a pronúncia galega do sacerdote,
cuja missão neste mundo era sacudir as consciências dos indolentes
crioulos.
Severo del Valle era ateu e mação, mas tinha ambições políticas.
Não podia por isso dar-se ao luxo de faltar à missa mais concorrida
dos domingos e dias de festa, para que todos pudessem vê-lo.
Nívea, a esposa, preferia entender-se com Deus sem auxilio de
intermediários, tinha profunda desconfiança das sotainas, aborrecia-
se com as descrições do céu, do purgatório e do inferno, mas
acompanhava o marido nas suas ambições políticas, na esperança
de que, conseguindo ele um lugar no Congresso, ela podia obter o
voto feminino, pelo qual lutava fazia dez anos, sem que os seus
numerosos estados de gravidez a fizessem desanimar. Nessa Quinta-
Feira Santa o padre Restrepo tinha levado os ouvintes ao limite da
resistência com as suas visões apocalípticas, e Nívea começou a
sentir enjoos. Perguntou a si mesma se não estaria grávida de novo.
Apesar das abluções com vinagre e das esponjas de fel, tinha dado à
luz quinze filhos, dos quais dez restavam ainda vivos, e tinha razões
para supor que já se estava acomodando à idade, porque a sua filha
Clara, a mais pequena, tinha dez anos. Parecia que, por fim, tinha
acabado o ímpeto da sua assombrosa fertilidade. Fez por atribuir a
sua indisposição ao momento do sermão do padre Restrepo, quando
ele a apontou referindo-se aos fariseus que pretendiam legalizar os
bastardos e o matrimónio civil, desarticulando a Família, a Pátria, a
Propriedade e a Igreja, dando às mulheres a mesma posição que
aos homens, em aberto desafio à lei de Deus, que nesse aspecto era
muito precisa. Nívea e Severo ocupavam com os filhos toda a
terceira fila de bancos. Clara sentava-se ao lado da mãe. Esta
apertava-lhe a mão com impaciência quando o discurso do sacerdote
se estendia demasiado pelos pecados da carne, porque sabia que
isso levaria a pequena a imaginar aberrações que iam para lá da
realidade, como era evidente pelas perguntas que fazia e a que
ninguém sabia responder. Clara era muito precoce e tinha a
transbordante imaginação herdada, via materna, por todas as
mulheres da família. A temperatura da igreja aumentara e o cheiro
penetrante das velas, do incenso e da multidão apinhada contribuiu
para a fadiga de Nívea. Queria que a cerimónia terminasse de vez
para regressar à frescura da sua casa, sentar-se no corredor dos
fetos e saborear o refresco de orchata que a Ama preparava nos dias
de festa. Olhou os filhos, os mais pequenos estavam cansados,
rígidos na roupa domingueira e os mais velhos começavam a ficar
distraídos. Poisou os olhos em Rosa, a mais velha das filhas vivas, e,
como sempre, ficou surpreendida. A sua estranha beleza de uma
qualidade perturbadora, à qual nem ela escapava, parecia fabricada
de material diferente do da raça humana. Nívea soube que ela não
era deste mundo ainda antes de a dar à luz porque a viu em sonhos,
por isso não se surpreendeu quando a parteira deu um grito ao vê-
la. Ao nascer, Rosa era branca, lisa, sem rugas, como uma boneca
de louça, com o cabelo verde e os olhos amarelos, a criatura mais
formosa que tinha nascido na terra desde os tempos do pecado
original, como disse a parteira benzendo-se. Desde o primeiro
banho, a Ama lavou-lhe o cabelo com infusão de camomila, que lhe
enfraqueceu a cor, dando-lhe tonalidades de bronze velho, e punha-
a nua ao sol, para fortalecer a pele, translúcida nas zonas mais
delicadas do ventre e das axilas, onde se adivinhavam as veias e a
textura secreta dos músculos. Aqueles passes de cigana, no entanto,
não foram suficientes e depressa correu o boato que tinha nascido
um anjo. Nívea esperou que as ingratas fases do crescimento
dessem à sua filha algumas imperfeições, mas nada disso
aconteceu, bem pelo contrário, aos dezoito anos Rosa não
engordara e não lhe tinham rebentado borbulhas, mas havia
acentuado, isso sim, a sua graça marítima. O tom da pele, com
reflexos azulados, e o do cabelo, a lentidão dos movimentos e o
caracter silencioso evocavam um habitante aquático. Tinha qualquer
coisa de peixe e se tivesse uma cauda com escamas seria
certamente uma sereia, mas as suas pernas punham-na no limite
impreciso entre a criatura humana e o ser mitológico. Apesar de
tudo, a jovem fizera uma vida quase normal, tinha um noivo e um
dia havia de casar-se, passando dessa maneira a responsabilidade
da sua formosura para outras mãos. Rosa inclinou a cabeça e um
raio filtrou-se pelos vitrais da igreja, dando-lhe uma halo de luz ao
perfil. Algumas pessoas voltaram-se para a ver e cochicharam, como
frequentemente sucedia, mas Rosa parecia não dar por nada, era
imune à vaidade e nesse dia estava mais ausente que de costume,
imaginando novos animais para bordar na sua toalha, metade
pássaros, metade mamíferos, cobertos de plumas matizadas e
providos de cornos e cascos, tão gordos e com asas tão curtas que
desafiavam as leis da biologia e da aerodinâmica. Raras vezes
pensava no noivo, Esteban Trueba, não por falta de amor, mas por
temperamento esquecedor, e porque dois anos de separação são
grande ausência.