Já desde séculos se perdera a memória do lugar que ocupava aquela torre nas complicadas fortificações da Honra e Senhorio de Santa Ireneia. Não era decerto (segundo padre Soeiro) a nobre torre albarrã, nem a de alcáçova, onde se guardava o tesouro, o cartório, os sacos tão preciosos das especiarias do Oriente — e talvez, obscura e sem nome, apenas defendesse algum ângulo de muralha, para os lados em que o castelo enfrontava com as terras semeadas e os olmedos da Ribeira. Mas, sobrevivente às outras mais altivas, compreendida nas construções do paço formoso que se erguera de entre o sombrio castelo afonsino, e que dominava Santa Ireneia durante a dinastia de Avis, ligada ainda por claras arcarias dum terraço ao palácio de gosto italiano, em que Vicente Ramires converteu o paço manuelino depois da sua campanha de Castela; isolada no pomar, mas sobranceando o casarão que lentamente se edificara depois do incêndio do palácio em tempo de el-rei D. José, e a derradeira certamente onde retiniram armas e circularam os homens do terço dos Ramires — ela ligava as idades e como que mantinha, nas suas pedras eternas, a unidade da longa linhagem. Por isso o povo lhe chamara vagamente a «Torre de D. Ramires».” Título: A Ilustre Casa de Ramires.
A Ilustre Casa de Ramires – Eça de Queirós
A Ilustre Casa de Ramires
Eça de Queirós
Projecto Adamastor
Índice
Capítulo I
Capítulo II
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
Capítulo VI
Capítulo VII
Capítulo VIII
Capítulo IX
Capítulo X
Capítulo XI
Capítulo XII
Ficha Técnica
Título: A Ilustre Casa de Ramires
Autor: Eça de Queirós
Data Original de Publicação: 1900
Data Publicação eBook: 2013
Capa: Ana Ferreira
Imagem de Capa: Livraria de Gonçalo Ramires, autor desconhecido.
Revisão: Ricardo Lourenço
Esta obra foi revista segundo o Acordo Ortográfico de 1945, com base no texto disponível no Wikisource e na edição digitalizada pela Biblioteca Nacional de Portugal.
Este trabalho foi licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-CompartilhaIgual 3.0 Não Adaptada.
I
Desde as quatro horas da tarde, no calor e silêncio do domingo de Junho, o Fidalgo da Torre, em chinelos, com uma quinzena de linho envergada sobre a camisa de chita cor-de-rosa, trabalhava. Gonçalo Mendes Ramires (que naquela sua velha aldeia de Santa Ireneia, e na vila vizinha, a asseada e vistosa Vila-Clara, e mesmo na cidade, em Oliveira, todos conheciam pelo «Fidalgo da Torre») trabalhava numa novela histórica, A Torre de D. Ramires, destinada ao primeiro número dos Anais de Literatura e de História, revista nova, fundada por José Lúcio Castanheiro, seu antigo camarada de Coimbra, nos tempos do Cenáculo Patriótico, em casa das Severinas.
A livraria, clara e larga, escaiolada de azul, com pesadas estantes de pau-preto onde repousavam, no pó e na gravidade das lombadas de carneira, grossos fólios de convento e de foro, respirava para o pomar por duas janelas, uma de peitoril e poiais de pedra almofadados de veludo, outra mais rasgada, de varanda, frescamente perfumada pela madressilva, que se enroscava nas grades. Diante dessa varanda, na claridade forte, pousava a mesa — mesa imensa de pés torneados, coberta com uma colcha desbotada de damasco vermelho, e atravancada nessa tarde pelos rijos volumes da História Genealógica, todo o Vocabulário de Bluteau, tomos soltos do Panorama, e ao canto, em pilha, as obras de Walter Scott, sustentando um copo cheio de cravos amarelos. E daí, da sua cadeira de couro, Gonçalo Mendes Ramires, pensativo diante das tiras de papel almaço, roçando pela testa a rama da pena de pato, avistava sempre a inspiradora da sua novela — a Torre, a antiquíssima Torre, quadrada e negra sobre os limoeiros do pomar que em redor crescera, com uma pouca de hera no cunhal rachado, as fundas frestas gradeadas de ferro, as ameias e a miradoura bem cortadas no azul de Junho, robusta sobrevivência do Paço acastelado, da falada Honra de Santa Ireneia, solar dos Mendes Ramires desde os meados do século X.
Gonçalo Mendes Ramires (como confessava esse severo genealogista, o morgado de Cidadelhe), era certamente o mais genuíno e antigo fidalgo de Portugal. Raras famílias, mesmo coevas, poderiam traçar a sua ascendência, por linha varonil e sempre pura, até aos vagos senhores que entre Douro e Minho mantinham castelo e terra murada, quando os barões francos desceram, com pendão e caldeira, na hoste do Borguinhão. E os Ramires entroncavam limpidamente a sua casa, por linha pura e sempre varonil, no filho do conde Nuno Mendes, aquele agigantado Ordonho Mendes, senhor de Treixedo e de Santa Ireneia, que casou em 967 com Dona Elduara, condessa de Carrion, filha de Bermudo, «o Gotoso», rei de Leão.
Mais antigo na Espanha que o Condado Portucalense, rijamente, como ele, crescera e se afamara o Solar de Santa Ireneia — resistente como ele às fortunas e aos tempos. E depois, em cada lance forte da História de Portugal, sempre um Mendes Ramires avultou grandiosamente pelo heroísmo, pela lealdade, pelos nobres espíritos. Um dos mais esforçados da linhagem, Lourenço, por alcunha «o Cortador», colaço de Afonso Henriques (com quem na mesma noite, para receber a pranchada de cavaleiro, velara as armas na Sé de Zamora), aparece logo na batalha de Ourique, onde também avista Je