Uma viagem pela selva da vida contemporânea é o que José Saramago propõe ao leitor com estas crônicas, que partem dos mais variados assuntos – uma cena de rua ou uma notícia de jornal – para apresentar uma surpreendente releitura do mundo. Das mentiras da política e da publicidade à poesia dos pequenos gestos cotidianos, da vida secreta das cidades aos mistérios que se escondem na criação artística, nada escapa ao olhar arguto do escritor.
A Bagagem do Viajante – José Saramago
JOSÉ SARAMAGO
A BAGAGEM DO VIAJANTE
Crônicas
Estas crónicas foram publicadas, pela primeira vez, no diário A Capital (1969) e no semanário Jornal do Fundão (1971-2).
RETRATO DE ANTEPASSADOS
Nunca fui afecto a essa vaidade necrófila que leva tanta gente a pesquisar o passado e os que passaram, buscando os ramos e os enxertos da árvore que nenhuma botânica men ciona - a genealógica. Entendo que cada um de nós é, acima de tudo, filho das suas obras, daquilo que vai fazendo durante o tempo que cá anda. Saber donde vimos e quem nos gerou, apenas nos dá um pouco mais de firmeza civil, apenas concede uma espécie de alforria para a qual em nada contribuímos, mas que poupa respostas embaraçosas e olhares mais curiosos do que a boa educação haveria de permitir. Ser filho de alguém bastante conhecido para que não fiquem em branco as linhas do cartão de identidade, é como vir ao mundo carimbado e com salvo-conduto.
Por mim, nada me incomoda saber que para lá da terceira geração reinam as trevas completas. E como se os meus avós houvessem nascido por geração espontânea num mundo já todo formado, do qual não tinham qualquer responsabilidade: o mal e o bem eram obra alheia que a eles só competia tomar nas mãos inocentes. Apraz-me pensar assim, principalmente quando evoco um bisavô materno, que não cheguei a conhecer, oriundo da África do Norte, a respeito de quem me contavam histórias fabulosas. Descreviam-mo como um homem alto, magríssimo e escuro, de rosto de pedra, onde um sorriso, de tão raro, era uma festa. Disseram-me que matou um homem em duvidosas circunstâncias, a frio, como quem arranca uma silva. E também me disseram que a vítima é que tinha razão: mas não tinha espingarda.
Apesar de tão espessa nódoa de sangue na família, gosto de pensar neste homem, que veio de longe, misteriosamente de longe, de uma África de albornozes e areia, de montanhas frias e ardentes, pastor talvez, talvez salteador - e que ali fora iniciar-se na velha ciência agrícola, de que logo se afastou para ir guardar lezírias, de espingarda debaixo do braço, caminhando num passo elástico e balançado, infatigável. Depressa descobriu os segredos dos dias e das noites, e depressa descobriu também a negra fascinação que exercia nas mulheres o seu mistério de homem do outro lado do mundo. Por isso mesmo houve aquele crime de que falei. Nunca foi preso. Vivia longe da aldeia, numa barraca entre salgueiros, e tinha dois cães que olhavam os estranhos fixamente, sem ladrar, e não deixavam de olhar até que os visitantes se afastavam, a tremer. Este meu antepassado fascina-me como uma história de ladrões mouros. A um ponto tal que se fosse possível viajar no tempo, antes o queria ver a ele do que ao imperador Carlos Magno.
Mais perto de mim (tão perto que estendo a mão e toco a sua lembrança carnal, a cara seca e a barba crescida, os ombros magros que em mim se repetiram), aquele avô guardador de porcos, de cujos pais nada se sabia, posto na roda da Misericórdia, homem toda a vida secreto, de mínimas falas, também delgado e alto como uma vara. Este homem teve contra si o rancor de toda a aldeia, porque viera de fora, porque era filho das ervas, e, não obstante, dele se enamorara minha avó materna, a rapariga mais bela do tempo. Por isso meu avô teve de passar a sua noite de núpcias sentado à porta da casa, ao relento, de pau ferrado sobre os joelhos, à espera dos rivais ciosos que tinham jurado apedrejar-lhe o telhado. Ninguém apareceu, afinal, e a lua viajou toda a noite pelo céu, enquanto minha avó, de olhos abertos, aguardava o seu marido. E foi já madrugada clara que ambos se abraçaram um no outro.
E agora meus pais nesta fotografia com mais de cinquenta anos, tirada quando meu pai já voltara da guerra - a que para sempre ficou sendo a Grande Guerra - e minha mãe estava grávida de meu irmão, morto menino, de garrotilho. Estão os dois de pé, belos e jovens, de frente para o fotógrafo, com um ar de gravidade solene, que é ta