A Confissão da Leoa – Mia Couto

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Em ‘A confissão da leoa’, uma aldeia moçambicana é alvo de ataques mortais de leões provenientes da savana. O alarme chega à capital do país e um experimentado caçador, Arcanjo Baleiro, é enviado à região. Chegando lá, porém, ele se vê emaranhado numa teia de relações complexas e enigmáticas, em que os fatos, as lendas e os mitos se misturam. Uma habitante da aldeia, Mariamar, em permanente desacordo com a família e os vizinhos, tem suas próprias teorias sobre a origem e a natureza dos ataques das feras. A irmã dela, Silência, foi a vítima mais recente. O livro é narrado alternadamente pelos dois, Arcanjo e Mariamar, sempre em primeira pessoa. Ao longo das páginas, o leitor fica sabendo que eles já tiveram um primeiro encontro muitos anos atrás, quando Mariamar era adolescente e o caçador visitou a aldeia.

Na noite anterior, em nossa casa a ordem tinha sido ditada: as mulheres permaneceriam enclausuradas, longe dos que iriam chegar. Mais uma vez nós éramos excluídas, apartadas, apagadas. Na manhã seguinte, adiantei-me nos trabalhos caseiros. Queria poupar minha mãe que, desde cedo, se prostrara à entrada do pátio. A um certo momento, derramei-me a seu lado, decidida a repartir com ela o peso de quem sente a alma. Ignorou-me, no início. Depois, resmungou, entredentes: — Esta aldeia matou a sua irmã. Matou-me a mim. Agora, nunca mais mata ninguém. — Por favor, mãe. Acabámos de enterrar uma de nós. — Nós todas, mulheres, há muito que fomos enterradas. Seu pai me enterrou; sua avó, sua bisavó, todas foram sepultadas vivas. Hanifa Assulua tinha razão: talvez eu, sem saber, já estivesse enterrada. De tanto desconhecer o amor, eu estava sepultada. A nossa aldeia era um cemitério vivo, visitado apenas pelos seus próprios moradores. Olhei o casario que se estendia pelo vale. As casas descoloridas, tristonhas, como que arrependidas de terem emergido do chão. Pobre Kulumani que nunca desejou ser aldeia. Pobre de mim que nunca desejei ser nada. Vezes sem conta a nossa mãe tinha suplicado que fôssemos para a cidade. — Peço, marido, por tudo o que há no sagrado: vamos embora. — Você quer, você vai. — Deixaremos alguém tratando das campas. — É o contrário, mulher: se formos, as campas é que deixarão de tratar de nós. *** Sacudi lembranças. De que valia apurar, agora, esses azedos antigos? Se estivéssemos apegados ao passado, como poderia Silência, ainda falecente, chorar em nossos olhos? — O pai queixa-se de que, ontem, a mãe desafiou os mandamentos do luto. É verdade que ofendeu os espíritos? — Dou-lhe um conselho, minha filha: quando fizer amor, faça dentro do rio, dentro da água, como os peixes. — Por amor de Deus: isso não é conversa de uma mãe! — Pois lhe digo: fazer amor na água é melhor do que na cama. — Como sabe? — Eu vejo a vizinha. — A vizinha? Não pode, ela é totalmente viúva. Sorriu, com malícia, e confessou: escondida na margem, ela espreitava a vizinha a banhar-se sozinha. As mãos dessa mulher, aos poucos, se convertiam nas mãos de outras criaturas e semeavam em seu corpo arrepios nunca antes sentidos. — A vizinha me ensinou uma vingança contra os homens… Entendia eu o que aquela confissão escondia? A vizinha só fazia amor com os mortos. Era isso que Hanifa me estava dizendo. Gerações e gerações de falecidos desfilaram pelos braços da nossa vizinha. Gente de longe, gente de raça, gente que nunca foi gente: todos se acenderam no seu líquido leito. De todos esses amores, cada um por si escolhido, aquela mulher só colhia vantagens: não havia doença, não havia traição, não havia risco de engravidar. Restavam simples lembranças, sem cinza nem semente. Apenas longe dos vivos, as mulheres de Kulumani encontram correspondidos amores: era isso que minha mãe me ensinava. — A ordem do seu pai está certa. A partir de hoje, você não sai de casa. Que aquela reclusão fosse vontade de meu pai, isso em nada me surpreendia. Estranhei, sim, o modo entusiástico com que minha mãe apoiava agora a decisão do marido. — É isso mesmo, Mariamar: vai ficar aqui, bem trancada! Depois, pensei: talvez não fosse tão desconcertante esse empenho em me afastar de quem chegava. A mãe desconhecia o amor. Vantagem tinha a vizinha: no leito do rio, ela amara e fora amada. Em contrapartida, Hanifa Assulua receava a estrada, a viagem, a cidade. Não era a minha saída que a afligia. Era o despeito de ninguém a querer levar a ela. Outras mães, em outros lugares, teriam desejado que as filhas florescessem pelo mundo. A minha família, porém, fora contaminada pela mesquinhez que dominava a nossa aldeia. Quem viesse de fora, como esses que estavam chegando agora, acreditaria que os habitantes da aldeia são puros e bons. Puro engano. Os de Kulumani são hospitaleiros para quem é longínquo e estranho. Mas entre eles reina a inveja e a maledicência. Por isso o nosso a
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